Confesso o meu vício e fascínio pelo genial House. Este seriado cativou a minha família. É impossível não ser tocado pela irônica e racional forma de encarar a vida que House expressa. Estamos na
quinta temporada e a cada episódio me espanto com House na capacidade de ser tão frio e sentimental ao mesmo tempo. Ele é capaz de causar ódio e amor.
quinta temporada e a cada episódio me espanto com House na capacidade de ser tão frio e sentimental ao mesmo tempo. Ele é capaz de causar ódio e amor.
Para ser mais claro sobre a série segue abaixo um excelente artigo sobre o Dr. House. Para aqueles que não conhecem vai o incentivo para se tornar um adapto seguidor de House. O seriado é perfeito na descrição da vida e principalmente no que tange a realidade da fé cristã. Em House encontro a verdadeira dualidade da vida humana.
por Joel Pinheiro
Não há atualmente melhor série televisiva do que House (salvo um possível concorrente: The Good Wife). Personagens marcantes e um mistério envolvente a cada episódio levam-me à tela toda quinta à noite. E me entretém ainda mais a profundidade filosófica da série ao expor com honestidade sua concepção do ser humano e da relação entre razão e sentimentos, concepção aliás muito comum, cujos atrativos e fraquezas ficam explícitos, pois não se foge das possíveis contradições e dos becos sem-saída existenciais aos quais suas premissas básicas naturalmente levam.
Como é comum em tantas séries, House entrelaça duas narrativas: uma de curto e outra de longo prazo. A de curto prazo consiste em House e sua equipe desvendarem e curarem uma doença misteriosa a cada episódio, numa fórmula que pouco varia a cada semana. Isso permite ao espectador não-assíduo acompanhar qualquer episódio, tendo, ao fim dele, uma boa idéia do que é a série. Já a narrativa de longo prazo desenrola-se ao longo de vários episódios e até de temporadas. Nela, acompanhamos as mudanças na equipe do hospital e no relacionamento de seus membros, com o foco nos altos e baixos pessoais de House, que ora parece se afundar ainda mais em seus vícios, ora parece tornar-se, passo a passo, uma pessoa melhor. O que faz dessa série algo muito superior à média é que a narrativa de longo prazo mina e questiona as verdades tidas como evidentes na narrativa de curto prazo.
O curto prazo
O gancho que prende o espectador não é o enredo, mas os personagens, principalmente o protagonista, o médico Gregory House, que encarna à perfeição a idéia contemporânea de racionalidade: no âmbito do pensamento, a busca da verdade pelo método científico e, no da ação, a adequação de meios a fins. Nada que fuja disso é racional. A razão é entendida como oposta a sentimentos, a qualquer fé ou crença não-científica, e à moralidade (todos os três províncias das paixões). Sendo assim, a motivação de House enquanto médico não é salvar vidas (o que seria uma intromissão dos sentimentos, da empatia) mas pura e simplesmente descobrir a verdade, desvendar os enigmas apresentados pelos pacientes que lhe são encaminhados. Sua inteligência lhe permite, além disso, ser igualmente brilhante no diagnóstico das motivações humanas e dos relacionamentos alheios, que também o interessam sobretudo enquanto enigmas e objetos de manipulação. Como não poderia deixar de ser, racionalidade significa ateísmo convicto e uma visão cínica da humanidade (todo indivíduo é egoísta). O que o salva de ser insuportável é o senso de humor, que não se priva de nenhuma tirada espirituosa. Nem a paz de espírito e nem a ilusão de bondade devem vir antes da busca pela verdade que, por mais dura que seja, não nos impede de rir dela.
É até eufemismo chamar House de brilhante, pois o mesmo adjetivo se aplicaria a todos os médicos da série, verdadeiros manuais de medicina ambulantes, com casos excepcionais e notas de rodapé na ponta da língua. A racionalidade superdesenvolvida de House faz com que ele ascenda ao patamar da genialidade. Frequentemente, após tentar, sem sucesso, descobrir de todas as maneiras a doença que aflige um paciente, ele encontra a resposta numa situação não-relacionada ao caso. Uma conversa com seu colega Wilson, ou com a coordenadora do hospital, Cuddy, um comentário espirituoso ou um fato aleatório lhe leva ao insight inesperado que soluciona o caso. O trabalho de processamento e interpretação dos dados é automático e constante, de forma que a resposta apareça quando menos se espera. É essa genialidade do intelecto, essa faísca criativa e penetrante, que faz de House um médico superior aos demais; e é ela também que o torna mestre em decifrar pessoas.
Sua segunda característica distintiva é consequência da aplicação consistente da racionalidade às ações: a total ausência de escrúpulos na adequação de meios a fins. Quebras de protocolo; transgressões da lei, de mandamentos religiosos e de absolutos morais; métodos heterodoxos; procedimentos arriscadíssimos (ex: matar temporariamente um paciente para logo depois trazê-lo de volta à vida); nada o detém. Sua genialidade justifica ações que, num médico inferior, seriam condenáveis. Nos casos mais extremos, está disposto a praticar o aborto e a eutanásia sem titubeios (felizmente, na imensa maioria dos episódios ele salva vidas). Apesar do grave problema moral envolvido aí, é impossível negar que, aceitas as premissas por trás da narrativa mestra, seria arbitrário impor limites éticos (ou seja, sentimentais) à conduta do gênio, o único capaz de chegar ao fim almejado.
O médico gênio é, no entanto, um fracasso pessoal. Divorciado, solitário, recluso, ressentido. A personalidade anti-social, a língua afiada, a ironia implacável e a facilidade psicológica com que engana e manipula aqueles à sua volta fazem com que seja quase impossível aguenta-lo por muito tempo.
O único amigo de House é Wilson, seu oposto humano (embora também ótimo médico). Wilson vive em contato com seus sentimentos e – mais importante – com os sentimentos dos outros; não para desmascará-los e desmistificar a bondade alheia, como faz House, mas para oferecer consolo a quem precise. Dar conforto emocional é sua razão de existir, e por isso ele não vê grandes problemas em deixar cada um com suas crenças (ao contrário da intransigência cientificista do amigo); a paz interior pode ter prioridade sobre a verdade – mesmo porque muitos dos seus pacientes (ele é oncologista) têm apenas a morte pela frente, enquanto os de House costumam padecer de doenças curáveis.
O longo prazo
O melhor da série é que ela não simplifica e não estereotipa as coisas; há uma honestidade e um realismo maior do que estamos acostumados na TV. A narrativa de curto prazo pinta o quadro do racionalista bem-resolvido que enxerga a realidade como ela é, embora pague um preço alto por isso. A narrativa de longo prazo indica que há mais coisas entre o céu e a terra do que ele sonha. House renega suas emoções e sua consciência, mas nem por isso elas deixam de existir. Diz que sua motivação é puramente intelectual, mas diversos episódios revelam que a empatia e o desejo de curar os pacientes também o movem.
A frieza irônica, por sua vez, é um mecanismo de defesa, fruto de uma personalidade profundamente ferida. Sua vida é marcada pelo arrependimento e pela falta de coragem de ir atrás do que realmente quer (por exemplo, o amor de sua vida). Além disso, uma dor crônica na perna (não se sabe até que ponto física ou psicológica) o deixa permanentemente manco e mal-humorado, e o humor cruel é uma forma de partilhar a frustração que sente. Fica confortável apenas naquela atividade em que exerce total controle e superioridade. O vício em analgésicos é um símbolo dos vícios de comportamento. Longe de transformar House num ser desprezível, contudo, esse lado mais humano torna-o digno da simpatia do espectador. Não se trata, afinal de um psicopata, desprovido de uma consciência que o guie. Por mais que, teoricamente, encare seu senso moral como um entrave emotivo a uma vida puramente racional, também não quer se livrar dele.
Já Wilson, muito mais confortável com seus sentimentos e relacionamentos, também tem uma vida pessoal em frangalhos. Três divórcios (e muitos casos que não levam a nada) e incontáveis arrependimentos. Embora seja uma boa pessoa sempre disposta a ajudar, seu caráter é ambíguo. Ser amigo de Wilson é enredar-se numa malha de culpas, sensibilidades e auto-piedade; é cair numa teia de tentáculos emocionais que constituem uma prisão da alma. Usando a expressão perspicaz de Nietzsche, o oncologista parece ser daqueles sempre a procura de vítimas para suas boas ações, e que termina por sufocar quem dele depende. Assim, se Wilson é o único com a paciência e a disposição para ser amigo de House, House é o único com o devido distanciamento, frieza e ironia para aguentar a amizade de Wilson. Tudo considerado, Wilson é um ser humano mais completo e maduro do que House, e na maior parte das vezes tem bons conselhos a oferecer; mesmo assim, fica claro que a vida dos sentimentos e relacionamentos não oferece uma saída e, assim como a suposta razão pura, ela também pode esconder fraquezas de caráter e desejos mais baixos.
Há um certo pessimismo acerca do lado “humano” da vida. Se na ciência chegamos a verdades e certezas, na vida pessoal não há solução. Todos os casamentos e relacionamentos amorosos terminam em separação ou são vítimas da infidelidade, e todas as amizades e lealdades, quando não baseadas desde o início em alguma ilusão, estão sujeitas ao desapontamento e ao rompimento.
Um diagnóstico?
No final das contas, a série não se decide. É possível um ato não-egoísta? Qual é a postura mais de acordo com a realidade: a racionalista ou a sentimental? Oscila-se entre duas possíveis concepções de moral: uma positiva, segundo a qual a ética consiste em sentimentos que nos levam a ajudar os outros e nos sentir bem – paixões irracionais, é verdade, mas a constituição humana demanda uma certa irracionalidade e o resultado final é bom; e outra negativa, segundo a qual a ética é um resíduo de instintos e pressões sociais acumulados que nos torna infelizes e, pior ainda, serve de máscara para o egoísmo.
Felizmente, é a primeira visão que costuma prevalecer nos momentos mais importantes. É uma visão pobre, admito, mas é tão longe quanto a série pode ir sem abandonar sua concepção de mundo inicial: a idéia de que razão e sentimentos, verdade e moralidade, ciência e fé, vida profissional e pessoal ocupam esferas completamente separadas, quando não antagônicas. Na ciência, verdade objetiva; no trato com pessoas, na conduta ética e na religião, apenas subjetividade. A idéia antiga de uma ciência da felicidade (ou seja, a ética), de que as paixões humanas devem obedecer a um ordenamento racional e que a razão recebe delas dados importantes, em suma, que a objetividade seja possível tanto nas “humanas” quanto nas “exatas”, é totalmente alheia ao seriado.
Bem, quase totalmente, pois há duas exceções. A primeira delas, bem pouco explorada, é a arte, em particular a música, que funciona como a válvula criativa de House. A segunda é o sentimento de culpa, cujos efeitos devastadores sobre os personagens a série não tem pudores de mostrar. Isso indica a percepção de uma ordem objetiva nos atos humanos, passível de ser violada. Contudo, ninguém sabe o que fazer com ela. A confissão da falta é frequentemente vista como um ato egoísta, um alívio da consciência às custas de quem ouve a confissão. E o perdão, mesmo quando sincero, é incapaz de restabelecer a ordem moral e a paz de espírito ao pecador. Fica-se entre duas escolhas ruins: a verdade dolorosa e que nos torna solitários, ou a felicidade e o companheirismo numa vida de ilusões. E não poderia ser diferente num mundo onde o Cristianismo enquanto possibilidade real de salvação morreu mas em que seus juízos de valor e idéias da importância do perdão permanecem como um resíduo sentimental que exige uma resposta. Mas se tudo que não é científico é subjetivo, então a razão é incapaz de nos tirar desse impasse.
No final das contas, temos que concluir que a concepção de razão da série (que é, enfim, a concepção moderna) é incapaz de lidar satisfatoriamente com a realidade. House não é o homem racional, e sim o homem que baniu a razão de todas as esferas de sua vida exceto uma, ainda que nessa uma ela opere excepcionalmente. Não há equilíbrio e nem justa medida. A razão elenca meios para se chegar aos fins, mas é incapaz de mostrar quais os fins nobres e dignos de serem perseguidos. Será possível uma mudança em House nessa direção de uma razão mais completa, ou seja, uma mudança outra que a mera intrusão irracionalista dos sentimentos na conduta, que o tornaria um médico pior e, pior ainda, nos privaria das tiradas satíricas pelas quais ele é tão amado? Não sei. Sei que, se isso acontecesse, a série acabaria; mas não deixaria de ser um belo final.
Fonte: http://www.dicta.com.br/house-no-raio-x/
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