quinta-feira, 1 de abril de 2010

A opção preferencial pela loucura. A marca do nosso tempo...



por Martim Vasques da Cunha


Recentemente, foi publicado um texto na blogosfera que perguntava se Martin Scorsese não passava de uma farsa. Depois de ter visto Ilha do Medo (Shutter Island, 2010), creio que as suspeitas foram infundadas. É simplesmente um de seus melhores filmes, que fica anos à luz de Os infiltrados, O Aviador e Gangues de Nova York – e não deixa nada a dever ao seu cânone, composto por clássicos como Taxi Driver, Touro Indomável, Os bons companheiros e Cassino.

A obra de Scorsese peca por irregularidades. Ela não consegue, por exemplo, atingir a coesão de intensidade de um Kubrick, de um Bresson ou até mesmo de um John Ford. Existem altos e baixos – mas jamais um filme ruim ou até mesmo insuportável de assistir. Scorsese sempre quis fazer um cinema que atingisse o público no âmbito dos sentimentos e que também o completasse como autor, como um artista que usa o meio para expressar suas candentes obsessões.

Este método deu certo em Depois de Horas, Cabo do Medo (Cape Fear) e A Época da Inocência (talvez sua obra-prima e seu filme mais subestimado pela crítica), mas agora, com Ilha do Medo, ele realiza aquilo que era uma de suas intenções desde do início da carreira: o filme subversivo.

Scorsese discorre longamente sobre esse gênero perdido, que fica entre o filme B e o suspense psicológico, em seu documentário Uma viagem pessoal pelo cinema americano (1996). Para o cineasta nova-iorquino, o filme subversivo é capaz de transmitir ao público uma série de reflexões que jamais seriam compreendidas se fossem exprimidas de forma direta, justamente por seu caráter perturbador. Os temas são os mais desagradáveis possíveis: perversões sexuais, loucura, paranóia, drogas – um infinito etécetra que só precisa de uma oportunidade para que o ser humano mostre sua verdadeira natureza.

Esta é a pergunta que Scorsese lança ao espectador com Ilha do Medo: Qual é a verdadeira natureza humana? E, para isso, ele utiliza de todos os recursos cinematográficos de manipulação para que poucos percebam o que está em jogo. De cortes abruptos a uma fotografia estilizada, passando pelo uso de música clássica contemporânea, até intepretações que não têm medo de atingir o histriônico (e aqui temos de fazer justiça a Leonardo DiCaprio, que melhora a cada filme que faz – veja seu trabalho em Revolutionary Road, de Sam Mendes), Scorsese brinca com os sentidos da platéia e a faz também questionar sobre o que seria a realidade e como a apreendemos na nossa consciência.

Parece que estou a comentar um tratado filosófico – e não seria exagero fazer isso se Ilha do Medo não fosse um filme complexo que, mesmo com seu final surpresa, só pode ser apreciado após repetidas revisões. Mas, como se não bastasse, é também um tratado de história cinematográfica: Scorsese dialoga com Fritz Lang, Samuel Fuller, Alfred Hitchcock e, de quebra, ainda faz referências à sua própria obra, ao Silêncio dos Inocentes de Jonathan Demme (o que faz ali Ted Levine, o Buffalo Bill, como diretor de segurança do presídio – e sua estranha conversa a respeito de Deus e da violência?), além de não hesitar em experimentar com a forma narrativa se for necessário, jogando a platéia em um labirinto indigesto.

A ousadia formal e temática de Ilha do Medo atinge o seu ápice quando se apresenta como uma tragédia – um gênero raro para nossos tempos pós-modernos. Não há alívio ou muito menos a possibilidade de redenção. E tudo isso por causa da escolha final do personagem de DiCaprio que não sabe se é melhor morrer como um animal ou viver como um homem bom. A pergunta trava a nossa garganta porque é a mesma que fazemos todos dias, ao acordarmos e, depois, ao dormirmos. No mundo atual, que tornou-se uma espécie de ilha do medo, a opção preferencial pela loucura é, em muitos casos, uma opção real. E quando uma obra de arte mostra esse dilema com tal presciência, a única coisa que podemos fazer é nos render e também nos perguntar se não tomaríamos a mesma decisão.


Fonte: http://www.dicta.com.br/

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