sábado, 19 de dezembro de 2009

Rui Barbosa...

"Nasci, é verdade, na pobreza; e tal me honro; porque essa pobreza era a coroa de uma vida, que o amargor dos sacrifícios não deixou frutificar em prosperidade. Mas se disso me desvaneço, não é menor a honra, para mim, de sabido, com o suor de muitas agonias, transformar espinhos em frutos de bênção, fazendo do meu trabalho um manto de respeito para a memória de meu pai."

Rui Barbosa...

"Os governos do validismo e impunidade acabam fatalmente na política de alcova. Gasto nos homens o sentimento da dignidade e, substituídas as ambições da honra pelas do dinheiro, vai-se ter, por fim, a essa esqualidez d'alma, em que se não hesita em cunhar dinheiro com a família, vendendo o objeto das afeições mais santas no mercado da lascívia poderosa."

Rui Barbosa...

"Creio, e sempre acreditei que, em matéria de justiça e brio, não há categorias. Entendo, e sempre entendi que nos primeiros anos da vida é que se há de cultivar com mais mimo a flor da sensibilidade moral. Penso, e nunca deixei de pensar que de moço é que o homem se habitua, pelo exemplo dos seus mestres e superiores, a ser reto e zeloso da sua dignidade."

Rui Barbosa...

"À consciência de um homem de bem não é dado sondar o íntimo à primeira alusão desprezível, que lhe dirijam. Mas a reiteração da afronta, ainda quando se lhe não rasteie o sentido, o adverte de que alguma trama indigna se urde, no escuro, contra o seu nome, e o obriga, em qualquer tempo que ela se reproduza, a arrancar a máscara à calúnia. Esta reação nunca é tardia, nunca o pode ser, e, toda vez que se manifeste, o mais trivial instinto da dignidade humana impõe ao agressor o dever de descobrir as suas armas. E ao agredido assiste o direito de exigi-lo."

Rui Barbosa...

"Desde 1876 que eu escrevia e pregava contra o consórcio da Igreja com o Estado; mas nunca o fiz em nome da irreligião: sempre, em nome da liberdade. Ora, liberdade e religião são sócias, não inimigas. Não há religião sem liberdade. Não há liberdade sem religião."

Rui Barbosa...

"Felizmente a força e fulgor da religião católica não dependem dos erros e crimes de seus sacerdotes: o divino e eterno não dependem do humano e contigente. Embora qualificados de ateus, continuaremos a amar a religião em que nascemos: porque a consideramos a única verdadeira e divina, tanto mais quando tem resistido a ação deletéria de tantos vícios e crimes, praticados em seu nome e a sua sombra."

Rui Barbosa...

"O Estado não deve ensinar a religião, pelo mesmo motivo por que não pode ensinar a irreligião. São razões de moralidade, razões de governo, razões de direito, razões de competência natural as que se opõem a que ele abra escola profissional de incredulidade, ou assuma a cadeira de propaganda religiosa."

A Igreja Evangélica é legitimadora da corrupção...

por Henrique Moraes Ziller

A afirmação que se faz no título desse artigo fundamenta-se em cinco percepções acerca da presença da Igreja Evangélica na nação brasileira, relativamente a sua atuação.

Em primeiro lugar, a Igreja Evangélica Brasileira é legitimadora da corrupção porque não a denuncia. Não concebe que deva encarnar a função profética, relega ao segundo plano as questões sócio-políticas, e não se manifesta sobre aquela que é a maior manifestação do mal nas terras brasileiras: a corrupção. Não há denúncia.

Em segundo lugar, a Igreja Evangélica Brasileira é legitimadora da corrupção porque sua ação social substitui a ação do Estado, não denuncia a situação e não exige que o Poder Público desempenhe suas obrigações. Se por um breve momento a Igreja Evangélica Brasileira deixasse de realizar suas ações de assistência social, o País se tornaria um caos, imediatamente. A distribuição da renda, consubstanciada na distribuição de cestas básicas e demais ações similares, a recuperação e inserção social, consubstanciadas nos trabalhos das inúmeras casas de recuperação, a promoção do ensino, por intermédio de milhares de escolas confessionais, o cuidado com a criança, realizado por creches e pela própria Escola Dominical, tudo isso, são funções do Estado negligente que não as realiza. Na medida em que a Igreja Evangélica faz tudo isso – e jamais deve deixar de fazer – sem a devida e obrigatória participação do Estado, e não denuncia a gravidade do fato, está sendo cúmplice de governantes e parlamentares criminosos, que utilizam em benefício próprio os recursos que deveriam ser destinados a essas atividades.

Em terceiro lugar, a Igreja Evangélica Brasileira é legitimadora da corrupção porque se associa ao Poder Público sem a crítica adequada. Seus líderes sobem nos palanques políticos, impõem as mãos sobre as cabeças de gente cujo pensamento está voltado apenas para seus próprios interesses e para o crime, dá e recebe condecorações de e para gente sem a menor credencial ética para isso, cede os púlpitos a bandidos, enfim, associa-se a gente que deveria estar presa, mas que usufrui da liberdade que o seu poder lhes permite adquirir. Aqueles que deveriam ser alvo de denúncia e profetismo por parte da Igreja são seus grandes amigos e aliados.

Em quarto lugar, a Igreja Evangélica Brasileira é legitimadora da corrupção porque não desenvolve ações consistentes de combate à corrupção. E nem poderia ser diferente, visto que ela nem mesmo a denuncia. Enfrentar esse mal é obrigação, mas nada faz a respeito.

Em quinto lugar, a Igreja Evangélica Brasileira é legitimadora da corrupção porque a pratica desavergonhadamente.

À denúncia acima pronunciada segue-se, necessariamente, a proposta de ação.

1. Para denunciar a corrupção nos púlpitos, e perante a nação, obrigação inadiável da Igreja Evangélica Brasileira, é necessário colocar ordem dentro de casa: transparência das contas. Igrejas precisam publicar seus balancetes e prestar contas do que fazem com os dinheiros de seus membros, se quiserem ter credibilidade e autoridade para profetizar contra o mau uso dos recursos pelo Poder Público. Os líderes de igreja não podem submeter-se apenas à prestação de contas – inevitável e certa – diante de Deus. Precisam entender o momento em que o País se encontra e dar o exemplo. Transparência, eis a exigência.

2. A Igreja não pode deixar de fazer ação social, mas tem que cobrar a ação do Governo, o emprego das verbas públicas nos programas sociais e as ações que promovam a distribuição de renda. Precisa-se, antes de mais nada, de informações acerca de todo o esforço que a Igreja Evangélica Brasileira está fazendo para amenizar a situação de dificuldade em que vive grande parte da nação. O Governo tem que conhecer a enorme dimensão dessas ações, e seu alcance. Trabalho que dá credibilidade para cobrar do Governo que faça a sua parte, em particular impedindo que o dinheiro público seja desviado para atender a interesses privados. A Igreja não pode substituir a ação do Estado, como ocorre hoje; esse esforço tem que ser complementar. O Estado tem a obrigação de zelar por seus cidadãos, a Igreja, de amar o próximo. O trabalho da Igreja não exime o Estado de sua responsabilidade. No entanto, a última coisa que se deve pleitear é a parceria na qual as igrejas recebam mais verbas públicas para a realização de ações de cunho social. Há generosidade e recursos suficientes para contribuir com as obras das Igrejas. Não se rejeitam parcerias com o Poder Público, mas elas só podem se estabelecer fundamentadas em sólidos sistemas de controle e transparência. Em parceria com o Poder Público, a Igreja tem demonstrado que é engolida pelo mesmo mal que assola a Nação.

3. Não há outra possibilidade, nesse momento, senão o rompimento radical com as práticas que a Igreja Evangélica Brasileira tem adotado em relação aos seus representantes no Poder Executivo e no Poder Legislativo. Se eles querem ir às igrejas, ou se mesmo já são membros, que se assentem nos bancos e ouçam, em silêncio. Se quiserem conversar com esse povo sobre política, que se marquem reuniões específicas para isso, e que nunca se tratem tais assuntos em cultos. Não se pode mais chamá-los aos púlpitos e impor sobre eles as mãos, manipulando a compreensão dos membros. Se querem oração que recebam-na nos gabinetes, pois o Deus que ouve em secreto em secreto os responderá. Pastores não devem receber condecorações das mãos de criminosos travestidos de prefeitos e parlamentares, há que se ter o mínimo de decência e discernimento.

4. A Igreja precisa adentrar o espaço público aberto a ela e a toda a comunidade. Participar dos Conselhos Municipais de Políticas Públicas criados por lei para exercer o controle das ações públicas em áreas como a educação, a saúde e a assistência social, entre outras. Pastores devem incentivar seus membros a participar, promover treinamento para eles, e facilitar-lhes o acesso a estas instâncias de participação política. Fazendo isso, a Igreja estará garantindo a merenda escolar para seus próprios filhos – e demais crianças de suas cidades, o salário adequado para os professores, os recursos para as entidades de assistência social, os programas de enfrentamento de moléstias, o dinheiro para a farmácia básica, entre tantas outras possibilidades. A legislação brasileira tem criado esses conselhos, dos quais devem fazer parte representantes da sociedade civil organizada. Espaço absolutamente adequado para a ação consistente da entidade que mais faz ação social nesse País, a Igreja Evangélica Brasileira.

5. Quanto à participação na corrupção desenfreada nesse País, já conhecida há tanto tempo, e vergonhosamente evidenciada, por exemplo, na CPMI dos Sanguessugas, é necessário, em arrependimento e quebrantamento, pedir perdão. Pedir perdão a Deus e à Nação, pois esperava-se muito mais da Igreja Evangélica Brasileira.

Sobre ela pesa duro juízo, por suas ações, por sua acomodação, por sua omissão cúmplice. Pois, ao invés de destruir as obras do diabo, tornou-se particípe delas.


* Henrique Moraes Ziller é membro da Igreja Metodista da Asa Sul, em Brasília – DF, é Audito Federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da União e Presidente do Instituto de Fiscalização e o controle.

Fonte: www.cristianismohoje.com.br

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Armas da liberdade...

por Olavo de Carvalho

A coisa mais óbvia, na análise da História e da sociedade, é que, quando a situação muda muito, você já não pode descrevê-la com os mesmos conceitos de antes: tem de criar novos ou aperfeiçoar criticamente os velhos, para dar conta de fatos inéditos, não enquadráveis nos gêneros conhecidos.

É patético observar como, já em plena fase de implantação do governo mundial, os analistas políticos, na universidade ou na mídia, continuam oferecendo ao público análises baseadas nos velhos conceitos de ´"Estado nacional", "poder nacional", "relações internacionais", "livre comércio", "democracia", "imperialismo", "luta de classes", "conflitos étnicos" etc., quando é claro que nada disso tem grande relação com os fatos do mundo atual.

Os acontecimentos mais básicos dos últimos cinqüenta anos são: primeiro, a ascensão de elites globalistas, desligadas de qualquer interesse nacional identificável e empenhadas na construção não somente de um Estado mundial mas de uma pseudocivilização planetária unificada, inteiramente artificial, concebida não como expressão da sociedade mas como instrumento de controle da sociedade pelo Estado; segundo, os progressos fabulosos das ciências humanas, que depositam nas mãos dessas elites meios de dominação social jamais sonhados pelos tiranos de outras épocas.

Várias décadas atrás, Ludwig von Bertalanffy (1901-1972), o criador da Teoria Geral dos Sistemas, ciente de que sua contribuição à ciência estava sendo usada para fins indevidos, já advertia: "O maior perigo dos sistemas totalitários modernos é talvez o fato de que estão terrivelmente avançados não somente no plano da técnica física ou biológica, mas também no da técnica psicológica. Os métodos de sugestionamento em massa, de liberação dos instintos da besta humana, de condicionamento ou controle do pensamento desenvolveram-se até alcançar uma eficicácia formidável: o totalitarismo moderno é tão terrivelmente científico que, perto dele, o absolutismo dos períodos anteriores aparece como um mal menor, diletante e comparativamente inofensivo."

Em L'Empire Écologique: La Subversion de l'Écologie par le Mondialisme (1998), Pascal Bernardin explicou em maiores detalhes como a Teoria Geral dos Sistemas vem servindo de base para a construção de um sistema totalitário mundial, que nos últimos dez anos, definitivamente, saiu do estado de projeto para o de uma realidade patente, que só não vê quem não quer. Mas von Bertalanffy não se referia somente à sua própria teoria. Ele fala de "métodos", no plural, e o cidadão comum das democracias nem pode fazer uma idéia da pletora de recursos hoje postos à disposição dos novos senhores do mundo pela psicologia, pela sociologia etc. Se von Bertalanffy tivesse de citar nomes, não omitiria o de Kurt Levin, talvez o maior psicólogo social de todos os tempos, cujo Instituto Tavistock, em Londres, foi constituído pela própria elite global em 1947 com a finalidade única de criar meios de controle social capazes de conciliar a permanência da democracia jurídica formal com a dominação completa do Estado sobre a sociedade.

Só para vocês fazerem uma idéia de até onde a coisa chega, os programas educacionais de quase todas as nações do mundo, em vigor desde há pelo menos vinte anos, são determinados por normas homogêneas diretamente impostas pela ONU e calculadas não para desenvolver a inteligência ou a consciência moral das crianças, mas para fazer delas criaturas dóceis, facilmente amoldáveis, sem caráter, prontas a aderir entusiasticamente, sem discussão, a qualquer nova palavra-de-ordem que a elite global julgue útil aos seus objetivos. Os meios usados para isso são técnicas de controle "não aversivas", concebidas para fazer com que a vítima, cedendo às imposições da autoridade, sinta fazê-lo por livre vontade e desenvolva uma reação imediata de defesa irracional à simples sugestão de examinar criticamente o assunto. Seria um eufemismo dizer que a aplicação em massa dessas técnicas "influencia" os programas de educação pública: elas são todo o conteúdo da educação escolar atual. Todas as disciplinas, incluindo matemática e ciências, foram remoldadas para servir a propósitos de manipulação psicológica. O próprio Pascal Bernardin descreveu meticulosamente o fenômeno em Machiavel Pédagogue (1995). Leia e descobrirá por que seu filho não consegue resolver uma equação de segundo grau ou completar uma frase sem três solecismos, mas volta da escola falando grosso como um comissário do povo, cobrando dos pais uma conduta "politicamente correta".

A rapidez com que mutações repentinas de mentalidade, muitas delas arbitrárias, grotescas e até absurdas, se impõem universalmente sem encontrar a menor resistência, como se emanassem de uma lógica irrefutável e não de um maquiavelismo desprezível, poderia ser explicada pelo simples adestramento escolar que prepara as crianças para aceitar as novas modas como mandamentos divinos.

Mas evidentemente a escola não é a única agência empenhada em produzir esse resultado. A grande mídia, hoje maciçamente concentrada nas mãos de mega-empresas globalistas, tem um papel fundamental na estupidificação das massas. Para isso, uma das técnicas de emprego mais generalizado hoje em dia é a dissonância cognitiva, descoberta do psicólogo Leon Festinger (1919-1989). Vejam como a coisa funciona. Se vocês lerem os jornais americanos de hoje, saberão que Tiger Woods, o campeão de golfe, um dos cidadãos americanos mais queridos dos últimos tempos, está agora sob bombardeio cerrado dos jornais e noticiários de TV porque descobriram que o coitado tinha umas amantes. Escândalo! Horror! A indignação geral ameaça cortar metade dos patrocínios do adúltero e excluí-lo do rol das "pessoas maravilhosas" que aparecem em anúncios de tênis, chicletes e dietas miraculosas. Mas há um detalhe: ao lado dos protestos contra a imoralidade do esportista aparecem ataques ferozes aos "extremistas de direita" que não aceitam o abortismo, o casamento gay ou a indução de crianças à deleitação sexual prematura. Os dois códigos morais, mutuamente contraditórios, são oferecidos em simultaneidade, como igualmente obrigantes e sacrossantos. Excitado e impelido a todos os desmandos sexuais, mas ao mesmo tempo ameaçado de character assassination caso venha a praticá-los mesmo em dose modesta, o cidadão angustiado reage por uma espécie de colapso intelectual, tornando-se um boboca servil que já não sabe orientar-se a si mesmo e implora por uma voz de comando. O comando pode ser oco e sem sentido, como por exemplo "Change!", mas, quando vem, soa sempre como um alívio.

Acusar os cientistas por esse estado de coisas é tão idiota quanto jogar nas armas a culpa dos homicídios. Homens como von Bertalanffy, Levin e Festinger criaram instrumentos que podem servir tanto para a construção da tirania quanto para a reconquista da liberdade. Nós é que temos a obrigação de tirar essas armas das mãos de seus detentores monopolísticos, e aprender a usá-las com signo invertido, libertando o nosso espírito em vez de permitir que o escravizem.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Por uma política de libertação...

por Antônio Carlos Costa


Fala-se muito sobre a chamada política de confronto do governo do estado do Rio de Janeiro. Após um ano e meio de muito confronto, marcado por baixas de civis inocentes e policiais, sem conseqüência significativa alguma para a diminuição do número de homicídios, que deve chegar em dezembro à marca de 21.000 em dois anos (se contarmos homicídio doloso, encontro de cadáver, auto de resistência, latrocínio, pessoas que foram assassinadas e que se encontram na categoria “desaparecidos” e policiais mortos), a população começa a perceber que seu apoio inicial ao confronto estava equivocado.

Um dos dramas da vida reside no fato de que em muitas ocasiões há um lado dialético na verdade. Os dois lados de uma mesma moeda que precisam ser levados em consideração. Uma sutileza que passa despercebida pelos que se recusam a pensar de modo duplo. C. S. Lewis, famoso autor das "Crônicas de Nárnia", costumava dizer que o erro vem aos pares. Extremos opostos que se nos apresentam, forçando-nos a fazer uma escolha entre ambos, quando na verdade a escolha de ambos os lados representará a opção pela meia verdade. Como diz o famoso médico e teólogo galês, Martin Lloyd-Jones: “Não há nada pior na busca pela verdade do que elevarmos à condição de verdade completa um aspecto da verdade”. Em suma, pessoas podem estar numa discussão apresentando pontos de vista diferentes sobre um determinado tema e ambas estarem erradas.

Só um completo desconhecedor da natureza humana para eliminar o confronto da política de segurança pública. Sendo o homem quem é o estado tem que se fazer valer do monopólio do uso da força. Nossa tendência ao mal tem que ser refreada ou pela força da persuasão racional ou pelo poder coercitivo do estado. A idéia de eliminarmos a responsabilidade humana em razão do histórico de miséria da vida do malfeitor, fará com que admitamos como normais crimes que nenhuma miséria é capaz de justificar. Contudo, a meta do combate à violência mediante o confronto pode ser alcançada de modos diferentes, adaptando os meios aos fins estabelecidos e às circunstâncias históricas.

A atual política de segurança do estado do Rio de Janeiro está equivocada por vários motivos. Os números da violência estão aí para mostrar que houve algum equivoco e que uma correção de rumo urgente precisa ser feita. Senão vejamos.

Há um erro estratégico, incompreensível mesmo para um leigo, de focar o combate ao tráfico e ao uso ilegal de armas na comunidade pobre e não no entorno da cidade do Rio de Janeiro. Sabe-se que essas drogas vêm pelas nossas estradas. Por que não há um investigação séria e eficaz nas vias de acesso da cidade? Por que transferir o trabalho de apreensão para as comunidades pobres apenas?

A idéia de que há um preço de vidas a ser pago pela população a fim de que a violência seja reduzida é moralmente incorreta e unilateral. Esse preço está sendo pago pelos pobres e não pela classe média. Quem tem morrido em troca de tiros entre policiais e traficantes é gente como a menina Fabiana da Mangueira e o menino Ramon de Guadalupe, e não as crianças do Novo Leblon e do Mandala na Barra da Tijuca. Não se combate a violência com o foco mais voltado para a morte do malfeitor do que a proteção da vítima. É imoral trocar tiro com armamento que fura parede de alvenaria sabendo que há criança dentro das casas que situam-se nas regiões onde ocorrem os conflitos.

A invasão sem a intenção de ocupar as áreas dominadas por narcotraficantes representa um desembarque da Normandia pela metade. A um custo altíssimo de vidas entra-se numa região, mata-se dezenas, traumatiza-se crianças, para no minuto seguinte voltar-se para batalhões e delegacias, deixando a mesmíssima área devastada totalmente desguarnecida. Um observador estrangeiro atento será levado a pensar que ou enlouquecemos, ou perdemos o senso de valor da vida humana, ou somos um povo atrasado sob todos os pontos de vista. Precisamos de uma política de libertação. O estado precisa fazer com a população pobre o que o exército colombiano fez com a ex-refém das Farc, Ingrid Betancourt: “Somos do exército da Colômbia, a senhora está livre”. A falta de uma perspectiva de ocupação tem levado os próprios integrantes das polícias à percepção frustrante de que estão “enxugando gelo”. Olha, eu vi gente graúda da nossa segurança pública expressando para mim essa semana essa terrível frustração.

A morte de garotos envolvidos com o tráfico sem a presença definitiva do estado em áreas dominadas pelo crime e a criação de condição para a chegada de políticas públicas nas comunidades pobres, é outro aspecto desse desperdício de tempo, recursos e vida. Sabe-se que para cada jovem morto há uma fila indiana de reservistas do crime prontos para substituir os que pereceram. Rapazes com uma demanda de auto-aceitação imensa. Sabedores do fato de que com um fuzil na mão vão poder levar as meninas para a cama, ter o destino de vidas humanas em suas mãos e comprar os bonés, tênis e roupas de grifes famosas. Tudo isso num contexto de ausência completa de uma referência paterna, colapso da experiência familiar, perda de valores, pobreza e evasão escolar. Sem o estado presente e oferecendo condições dignas de vida para esses jovens, nós vamos entrar para a história como cidadãos do estado que mais matou e menos realizou para a promoção da vida e paz.

Como esperamos vencer essa crise terrível, a maior que a minha geração enfrentou, com a condição de penúria em que se encontra a nossa polícia? Nossa polícia trabalha em circunstância desumana. Os policiais que tombaram na proteção dos moradores da Fonte da Saudade ganhavam menos do que o custo fixo de cada filho das famílias para as quais ofereciam segurança. Como pagar tão mal a homens que exercem função social de tamanha importância e que correm risco de vida tamanhos no exercício de sua profissão? Essa polícia carece de melhores salários. Soldo digno de atrair os melhores jovens da nossa sociedade para o exercício do ofício de policial. Essa polícia carece de ser melhor qualificada. Não se pode botar uma arma na mão de uma homem, dizer que ele tem o direito de usá-la com base em um pacto social que envolve o consentimento de milhões de seres humanos, e não prepará-lo para tarefa que envolve vida e morte. Essa polícia carece de homens que saibam comandar e inflamar seus comandados com altos ideais de serviço ao próximo.

Tudo isso depende de investimento. Essa semana soube através de gente importante da área da segurança pública do nosso estado que o Rio de Janeiro precisa de mais 10.000 policiais para um policiamento ostensivo à altura das demandas do estado. Sabe-se também, conforme acabei de mencionar, que o salário do policial deve ser aumentado. Perguntei: “Mas, porque esse investimento não é feito?” Em tom que me pareceu sincero e tomado de frustração ouvi meu interlocutor dizer: “O estado do Rio de Janeiro não tem dinheiro”. Pensei: “Meu Deus, essa gente tinha que vir a público e admitir isso. A população tem o direito de saber se o estado tem condição ou não de oferecer segurança para os seus cidadãos”. Porque das duas uma: ou vamos embora daqui por causa do medo, ou nos mobilizamos para salvar o Rio de Janeiro por causa do amor. Se é assim, o governo federal peca ao deixar o segundo estado em arrecadação da federação sob um massacre sistemático de vidas humanas, não oferecendo recursos para que os homens que estão à frente da secretaria de segurança pública possam trabalhar.

Sou um leigo sobre segurança pública. No início do ano passado eu não sabia a diferença entre Polícia Civil e Militar. Não sabia que a primeira é responsável pelo serviço investigativo (no Rio de Janeiro são elucidados menos de 2% da autoria de homicídio doloso) e a segunda pelo policiamento ostensivo. Mas, venho de dias nos quais entrevistei todo mundo. Falei com coronéis da PM, parente de vítima, jornalistas, pesquisadores, presidente do ISP, secretário de segurança e o próprio governador. Cheguei à essas conclusões. Gostaria de saber se estou errado, se sou alarmista ou ingênuo. Aguardo convencimento racional do meu possível erro de avaliação.

Nós só não podemos fazer o que é tão próprio do brasileiro, deixar para a amanhã o que devemos fazer hoje. Não há mais espaço para procrastinação. Não podemos decidir não decidir, permitir que a maldade dos perversos seja reforçada pela fraqueza dos virtuosos, tornando-nos assim cúmplices de um genocídio. A hora de agirmos com mais bom senso é agora, especialmente quando tomamos conhecimento do fato de que pode ser que um terceiro monstro esteja para nascer na nossa cidade, o pior de todos. Permitimos o narcotráfico e a milícia, e, agora, surge no cenário o envolvimento com o crime baseado em ideologia de libertação dos oprimidos dos centros urbanos. Imagine marginais treinados para infernizar a cidade e julgando com isso que estão salvando os pobres.

Ainda é tempo. Houve povos que enfrentaram problemas mais graves dos que os nossos e os superaram. Nossa geração pode vencer essa batalha da violência. Mas, para isso precisamos trocar a idéia de confronto pela idéia de libertação. E isso mediante a união de todos nós que amamos e nos orgulhamos do estado maravilhoso que Deus nos deu para habitar em paz.

A missão integral...

por Ed René Kivitz

A proposta da missão integral como agenda ministerial para a Igreja é mais do que evangelismo pessoal e assistência social; é convocação para rendição ao senhorio de Cristo, para perdão dos pecados e recebimento do dom do Espírito Santo

A Teologia Evangelical – Missão integral, a partir de seu lema “O Evangelho todo, para o homem todo, para todos os homens”, definido no Congresso Internacional de Evangelização, realizado em 1974, em Lausanne, na Suíça, oferece uma lente através da qual lemos as Escrituras Sagradas em busca de referenciais para a presença do cristão e da comunidade cristã no mundo: “Assim como o Pai me enviou ao mundo, também eu vos envio” ( João 17.18; 20.21). Creio que são pelo menos os referenciais oferecidos pela teologia da missão integral: soteriologia, eclesiologia, missiologia, antropologia e kerigma.

A soteriologia da missão integral é o domínio de Deus, de direito e de fato, sobre todo o universo criado, através daqueles restaurados à imagem de Jesus Cristo – o primogênito dentre muitos irmãos. A salvação é o Reino de Deus em plenitude, onde a vontade do Senhor é realizada ou concretizada em perfeição. A redenção pessoal é apenas uma parcela do que o Novo Testamento chama salvação: o novo céu e a nova terra.

A eclesiologia da missão integral é o novo homem coletivo. Deus não está apenas salvando pessoas; está, principalmente, restaurando a raça humana. Estar em Cristo é não apenas ser nova criatura, mas também e principalmente ser nova humanidade – não mais descendência de Adão, mas de Cristo, o novo homem e homem novo. O caos do universo é fruto da rebeldia da raça humana em relação ao Deus criador; a redenção do universo – fazer convergir todas as coisas em Cristo – é resultado da reconciliação da raça humana com Deus. Deus estava em Cristo reconciliando consigo a humanidade. No cristianismo, a salvação é pessoal, a peregrinação espiritual é comunitária, e nada, absolutamente nada, é individual. A Igreja é a unidade dos redimidos que são transformados de glória em glória pelo Espírito Santo, até que todos cheguem juntos à estatura de ser humano perfeito.

A missiologia da missão integral é a sinalização histórica do Reino de Deus, que será consumado na eternidade. A Igreja, o corpo de Cristo, é o instrumento prioritário através do qual Jesus, o cabeça, exerce seu domínio sobre todas as coisas, no céu, na terra e debaixo da terra, não apenas neste século, mas também no vindouro. A missão da Igreja é manifestar aqui e agora a maior densidade possível do Reino de Deus que será consumado ali e além. O convite ao relacionamento pessoal com Deus é apenas uma parcela da missão. A missão integral implica a ação para que Cristo seja Senhor sobre tudo, todos, em todas as dimensões da existência humana.

A antropologia da missão integral é a unidade indivisível do pó da terra com o fôlego da vida; as dimensões física e espiritual do ser humano. “Corpo sem alma é defunto; alma sem corpo é fantasma”; “Cristo veio não só a alma do mal salvar, também o corpo ressuscitar”. A ação missiológica e pastoral da Igreja afeta a pessoa humana em todas as suas dimensões: biológica, psicológica, espiritual e social – a pessoa inteira em seu contexto, o homem e suas circunstâncias.

O kerigma, evangelização, na missão integral é a proclamação de que Jesus Cristo é o Senhor, seguida da convocação ao arrependimento e à fé, para acesso ao Reino de Deus. A oferta de perdão para os pecados pessoais é o início da peregrinação espiritual, porta de entrada para o relacionamento de submissão radical a Jesus Cristo, a partir do que a pessoa humana e tudo quanto ela produz passam a servir aos interesses do Reino de Deus, existindo e funcionando em alinhamento ao caráter perfeito do Senhor.

A proposta da missão integral como agenda ministerial para a Igreja é mais do que o mix evangelismo pessoal mais assistência social (geralmente como isca ou argumento evengelístico). O referencial da missão integral para a presença do cristão e da comunidade cristã no mundo é mais do que a construção ou multiplicação de igrejas locais, para onde os cristãos se retiram do mundo e passam a exercer funções que a viabilizam – ela, igreja, instituição religiosa – como um fim em si mesmo. A convocação da missão integral é para a rendição ao senhorio de Jesus Cristo, para perdão dos pecados e recebimento do dom do Espírito Santo, a partir do que se passa a integrar um corpo, o corpo de Cristo, ambiente para a experimentação coletiva dos benefícios da cruz. É este corpo o responsável por transbordar tais benefícios ao mundo, como anúncio profético do novo céu e da nova terra. O caminho missiológico e pastoral da missão integral é afetivo – relacional, em detrimento de metodológico –; operacional; comunitário, em detrimento de institucional; devocional, em detrimento de gerencial.

Sob o imperativo de levar o evangelho todo para o homem todo, para todos os homens, de acordo com o consenso de Lausanne, a Igreja é a comunidade da graça. Comunidade terapêutica; agência de transformação social; sinal histórico do Reino de Deus, instrumentalizada pelo Espírito Santo, enquanto serve incondicionalmente a Jesus Cristo, Rei dos reis, Senhor dos senhores, a quem seja glória eternamente, amém.


Fonte: http://www.eclesia.com.br/revistadet1.asp?cod_artigos=259

Missão integral da Igreja: Desafios para uma nova geração...

por Robinson Cavalcanti

Este tem sido um ano particularmente significativo para a Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL): tivemos Consulta Continental em El Salvador, Nacional em São Paulo e Regional em Alagoas, e uma série de encontros em outros países. Entre a teologia da libertação e o neofundamentalismo, uma nova geração de pastores e líderes opta pela teologia da missão integral da Igreja. Isso foi perceptível, inclusive, na última Consulta do programa “Fé, Ética e Economia” do Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI), em Buenos Aires, sob o tema “Globalizando a Vida Plena”. Esses fatos apontam para o caráter bíblico e histórico, e para a relevância dessa corrente de pensamento, dentro do espírito e do Pacto de Lausanne: evangelismo, comunhão, sã doutrina, ação social, inculturação, profetismo e assim por diante.

Gostaríamos, porém, de destacar alguns desafios para a nova geração de cristãos holísticos, nestes tempos de globalização e de pós-modernidade.

O desafio do resgate e da atualização da história

René Padilla, um dos principais pensadores da FTL, nos falava recentemente da sua alegria com a atual revitalização, e que a sua principal preocupação era com o desconhecimento histórico, tanto em relação ao legado reformado quanto à caminhada do próprio movimento. Resgatar o passado é recuperar um conteúdo (fatos, autores, idéias, temas) que permite a sua atualização e a sua aplicação ao presente.

Por outro lado, vale ressaltar que, até certo ponto, a década de 90 foi uma espécie de “década perdida” para a nossa corrente, com a maioria dos seus seguidores inerte pelo medo da patrulha, da censura e da discriminação por parte dos neofundamentalistas, paralisando o possível e necessário trabalho teológico, pastoral e profético. Medo do emprego analítico de ferramentas da filosofia e das ciências humanas. Medo de enfrentar, em suas agendas, temas agora abordados pela nova geração: a nova ordem geopolítica e geoeconômica internacional, gênero, raça, sexualidade, inculturação, profetismo, sanidade, ideologias, ecologia, ética, estética, ontologia etc.

Uma identidade evangélica deve nascer desse processo, em contraste com os desvios, exageros, teorias e radicalismos da nossa época.

O desafio das questões internas da Igreja

A questão central dos nossos tempos é de natureza eclesiológica. O que é a Igreja? Qual a sua natureza? Qual a sua organização? Qual a sua missão? Como a Igreja se entendeu a si mesma nestes dois mil anos? Como resistir, com fidelidade e criatividade, às ondas de novidades, particularmente as de origem estrangeira? É necessário discutir estas e outras questões, como o personalismo de estrelas, caciques e “apóstolos”; o escandaloso e freqüente divisionismo de denominações e “ministérios”; a domesticação aos sistemas seculares de poder; a “prosperidade” e a “batalha espiritual” como negação da Reforma Protestante; a Igreja como comunidade terapêutica ou como comunidade patogênica (sectarismo, individualismo, legalismo). Terá a Igreja algum impacto sobre o século 21?

O desafio das questões externas à Igreja

Há um desafio no campo das idéias e propostas em voga: a) o secularismo hedonista, com o seu consumismo e a busca frenética de bens materiais e status; b) a “religião civil”: reduzida aos ritos de passagem (batismo, casamento, enterro, inaugurações, colações de grau) e a “moral social”, descarnada de transcendência e de discipulado; c) o fanatismo dos fundamentalismos e dos misticismos, expressões doentias e perigosas da experiência religiosa.

Qual será a nossa contribuição para a civilização, com a crise dos paradigmas da modernidade: bondade natural, progresso, razão e utopias globais?

O desafio da nova (des)ordem internacional

O fim da Guerra Fria (EUA versus URSS) em 1989 nos trouxe um cenário semelhante ao fim das Guerras Púnicas (Roma versus Cartago): o monopólio geopolítico e militar, um novo e ameaçador império, sem oponentes, deixando todo o mundo fragilizado e vulnerável às novas “legiões”. A opção unilateral dos Estados Unidos implica a não assinatura de qualquer tratado internacional que o submeta a organismos multilaterais. A chamada “doutrina Bush” afirma: a) os interesses dos Estados Unidos sempre em primeiro lugar; b) a definição pelos Estados Unidos do que é o “bem” e o “mal”; c) o direito aos norte-americanos de realizarem “ataques preventivos”; d) O direito dos norte-americanos à eliminação de pessoas, instituições, regimes e Estados que lhes sejam obstáculos. Declinam a soberania nacional e a soberania popular. Os governantes são apenas “gerentes confiáveis”, inclusive em choque com a opinião pública. A vinculação do império com o fundamentalismo protestante procura legitimar uma “missão civilizadora” (fé e império), com ameaça tanto para os infiéis (islâmicos, por exemplo), quanto para os hereges (cristãos patriotas não-fundamentalistas).

O desafio das realidades nacionais

São vários os desafios pela frente: a resistência de diversos países em defesa de sua autodeterminação e de sua autonomia cultural (equivale dizer, de suas identidades); a situação dos oprimidos e dos excluídos; a perda de direitos sociais; o lugar dos países e dos blocos regionais na nova (des)ordem. No caso brasileiro, temos as limitações, os compromissos, os parceiros do novo governo federal e suas contradições, ambigüidades e reticências; a participação de novos aliados (ex-adversários), o “esquecimento” dos aliados históricos, a cooptação de quadros dirigentes, a despolitização do debate em torno de um projeto nacional, a desmobilização das bases, o tecnicismo, o “realismo”, o abandono de teses históricas e a repressão aos fiéis a essas teses. Aonde nos levará tudo isso? A um “salto de qualidade” ou a um novo capítulo da “circulação das elites” (Pareto)? E o que virá depois: populismo, ditadura ou “parceria com o império”?

Percebemos que o Senhor da História está levantando uma nova geração de convertidos comprometidos, disponibilizando-os com discernimento e poder, notificando-os dos riscos do martírio. Uma geração com maior liberdade epistemológica e maior abertura temática, crendo que “um mundo novo é possível” e que “uma Igreja nova é imprescindível”. Uma Igreja disposta a fazer história e devolver esperanças, marcada pela coragem e não pelo medo. Aberta ao que de bom vier de quaisquer correntes, mas disposta a denunciar e a se afastar do mal nelas contido.

À nova FTL, aos novos militantes da teologia da missão da igreja resta pela frente a única tarefa que cabe aos cristãos: “mudar o mundo” (Finney). Conseguirão? Permanece válido o pensamento: “É melhor se arriscar fazendo, do que não errar por não fazer”.

Missão Integral e Leitura da Bíblia...

por Júlio Paulo Tavares Zabatiero

1. A leitura da Bíblia: um monólogo edificante

A tradição de leitura bíblica no protestantismo é marcada pela individualidade. O estudo sério da Bíblia, supõe-se, é aquele que se faz sozinho, no escritório, após a oração, consultando a bibliografia necessária para superar os obstáculos que separam o leitor do texto bíblico – os obstáculos do tempo, do espaço, da cultura, das línguas bíblicas. Em nossa tradição, a leitura da Bíblia tem a ver com o uso correto do método correto (com o perdão pela redundância) - e supõe-se que haja apenas um método correto para se estudar seriamente a Bíblia. Os resultados desse tipo de leitura são, predominantemente, de tipo doutrinário ou existencial. Doutrinário, quando queremos confirmar as verdades da fé. Existencial, quando queremos aplicar essas verdades à vida das pessoas. Neste modelo de leitura, a missão da igreja não é prioritária. De fato, os conceitos de missão que se desenvolveram a partir deste modelo individualista de leitura da Bíblia também foi um projeto individualista: a missão tem a ver com a salvação das almas, ou das pessoas como já se avançou em tempos mais recentes. Salvação sim, em alguns casos, até se pode usar o termo salvação plena, mas sempre se dirige a indivíduos. O Evangelho é lido de forma redutiva e, assim, a missão é considerada de forma redutiva – um dos seus aspectos (a salvação de indivíduos) se torna praticamente o único ato missionário eclesiástico.

2. A leitura da Bíblia: um diálogo construtivo

Em vários círculos cristãos, católicos, protestantes e evangélicos, têm sido reconhecidos os limites do modelo predominante, e desde os anos oitenta do século passado um novo modelo de leitura está sendo construído, como, e.g., na leitura popular latino-americana, nas leituras contextualizadas na África e Ásia. E esse novo modelo, ainda em construção, só pode surgir porque a missão se tornou o critério da interpretação da Bíblia. É claro que os diferentes grupos cristãos acima mencionados têm noções distintas da missão. Em comum, porém, está a crença de que a igreja existe para a missão e que a missão que Deus confiou à igreja não se reduz à salvação de indivíduos, mas se concretiza na salvação de toda a criação, ou, como nos círculos da missão integral se costuma dizer: o Evangelho todo, para todas as pessoas, em todo o mundo, e para a pessoa como um todo – o que inclui a sociedade, a cultura, a economia, a política, o lazer, a educação, etc.
A partir da missão integral, portanto, podemos dizer que se está desenvolvendo um novo modo de ler a Bíblia, ao qual costumo chamar de modelo dialogal.Nesse novo modelo, ler a Bíblia visa construir consensos, ou seja, acordos fraternos sobre como praticar a vontade de Deus na atualidade, Consensos que sejam:
(a) eticamente válidos, pois nem todos os meios são justificados pelos fins – ou, nem tudo que funciona, ou que dá prazer, é justo, é bom, é santo;
(b) cognitivamente verdadeiros, pois nem todas as experiências, doutrinas e conceitos que defendemos passam pelo crivo da Sagrada Escritura; e
(c) pessoalmente verídicos, pois muitas vezes ocultamos a verdade pessoal e institucional atrás das máscaras do poder, do dinheiro, do prestígio ou do saber.

Ler a Bíblia em busca de consensos missionais depende de uma estratégia em que os sujeitos da leitura não sejam mais os indivíduos isolados, os especialistas da técnica, mas sejam todos os participantes da comunidade de fé. Depende de uma estratégia em que as diferentes contribuições de cada pessoa – tenha ela formação teológica ou não – possam ser:
(a) criticamente examinadas, ou seja, que a opinião de cada um seja demonstrada e provada e não apenas apoiada ou aceita por causa da autoridade acadêmica ou política ou espiritual de quem a formula;
(b) livremente apresentadas, ou seja, que cada membro da comunidade da fé possa falar, se expor, apresentar aos demais a sua visão da fé, da vida, da missão, da vontade de Deus conforme ele ou ela a vê na Escritura; e
(c) responsavelmente partilhadas, ou seja, que não se fale apenas por falar, que não se fale apenas a partir do achômetro de cada um, mas que cada participante do diálogo com a Bíblia e a partir da Bíblia, seja responsável em sua contribuição – tendo examinado bem o que leu e o que quer dizer – como os antigos judeus de Beréia que, ao ouvir a explanação da Bíblia pelos missionários cristãos, foram examinar cuidadosamente o valor e a validade da nova forma de ler a Bíblia que a fé cristã estava trazendo.

Traduzindo estas reflexões para a linguagem da prática cotidiana, precisamos aprender a ler a Bíblia com seriedade acadêmica (sem academicismo), ética (sem moralismo) e pessoal (sem individualismo). Ler a Bíblia sem o comodismo do hábito de achar na Bíblia aquilo que nós já sabemos ou sentimos; sem a atitude do especialista – da pessoa que vai aprender o jeito certo para, depois, dizer à igreja qual é a verdade que ela deve crer e praticar; ler a Bíblia sem a preguiça ou o medo de, ao invés de estudar a Bíblia, com todo o trabalho que a leitura exige, ler as leituras que outros fizeram da Bíblia e reproduzir as interpretações já feitas e presentes no comentários bíblicos, nos dicionários teológicos, nos sermões, nos artigos, etc... Nesse modelo, gastar tempo com o texto é muito mais importante do que ler sobre o texto. Nesse modelo, gastamos tempo com o texto na medida em que gastamos, também, nosso tempo com a ação missionária.

Precisamos aprender a ler a Bíblia como quem busca descobrir o tesouro que Deus colocou à disposição da humanidade e de toda a Sua criação, sabendo que aquele que encontrou um tesouro no campo vai, vende tudo o que tem, desfaz-se de seus antigos tesouros, e compra o campo a fim de – junto com todo o povo de Deus – garimpar e encontrar novos e mais preciosos tesouros que Deus tem para nos dar.


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Júlio Zabatiero é Doutor em Teologia e pastor auxiliar da Igreja Presbiteriana Independente da Coloninha. Além disso é professor da Escola Superior de Teologia de São Leopoldo (RS), presidente da Fraternidade Teológica Latino-Americana, setor Brasil, e professor visitante da Faculdade Teológica Sul Americana.

Humanitária, nunca humanista...

por Ariovaldo Ramos


A fé cristã é humanitária e não humanista. O humanismo acredita na bondade intrínseca do homem; já a fé cristã afirma que o homem é mau e constantemente mau o seu desígnio.

Quando a raça humana caiu, tudo o que permaneceu de bom nela é fruto do ato divino de emprestar, aos humanos, algo dos seus atributos comunicáveis.

Ao rompermos com Deus escolhemos ser o oposto dele, logo, escolhemos a maldade como estilo de vida.

Agora, como Deus é o lugar onde vivemos, nos movemos e existimos, ao rompermos com Deus, deveríamos ter deixado de existir, uma vez que fora de Deus nada existe ou pode existir.

Então, ao rompermos com Deus dois milagres aconteceram conosco: 1 – fomos mantidos na existência, logo, fomos mantidos em Deus; 2 – algo da bondade de Deus foi depositada em nós, de modo que, embora optando pela maldade, continuamos a saber e fazer o bem de várias maneiras.

Essa possibilidade do bem, em nós, não é mais intrínseca à humanidade, é fruto desse depósito de bondade de Deus em nós. Assim, na mesma medida em que não acreditamos que os seres humanos sejam capazes de, por si mesmos, fazer o bem, acreditamos que vale a pena investir na humanidade porque algo da bondade de Deus lhe foi emprestada. O que torna possível a pessoas que não amam a Deus amarem o próximo.

A fé cristã é humanitária, acredita que investir no bem da humanidade vale a pena, porque a bondade de Deus está atuando na humanidade e pela humanidade.

A fé cristã não se ilude com a humanidade, mas, ao mesmo tempo, não perde a esperança na humanidade.

A fé cristã luta pela humanidade porque sabe que essa é a luta de Deus.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009