quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Missão Integral e Leitura da Bíblia...

por Júlio Paulo Tavares Zabatiero

1. A leitura da Bíblia: um monólogo edificante

A tradição de leitura bíblica no protestantismo é marcada pela individualidade. O estudo sério da Bíblia, supõe-se, é aquele que se faz sozinho, no escritório, após a oração, consultando a bibliografia necessária para superar os obstáculos que separam o leitor do texto bíblico – os obstáculos do tempo, do espaço, da cultura, das línguas bíblicas. Em nossa tradição, a leitura da Bíblia tem a ver com o uso correto do método correto (com o perdão pela redundância) - e supõe-se que haja apenas um método correto para se estudar seriamente a Bíblia. Os resultados desse tipo de leitura são, predominantemente, de tipo doutrinário ou existencial. Doutrinário, quando queremos confirmar as verdades da fé. Existencial, quando queremos aplicar essas verdades à vida das pessoas. Neste modelo de leitura, a missão da igreja não é prioritária. De fato, os conceitos de missão que se desenvolveram a partir deste modelo individualista de leitura da Bíblia também foi um projeto individualista: a missão tem a ver com a salvação das almas, ou das pessoas como já se avançou em tempos mais recentes. Salvação sim, em alguns casos, até se pode usar o termo salvação plena, mas sempre se dirige a indivíduos. O Evangelho é lido de forma redutiva e, assim, a missão é considerada de forma redutiva – um dos seus aspectos (a salvação de indivíduos) se torna praticamente o único ato missionário eclesiástico.

2. A leitura da Bíblia: um diálogo construtivo

Em vários círculos cristãos, católicos, protestantes e evangélicos, têm sido reconhecidos os limites do modelo predominante, e desde os anos oitenta do século passado um novo modelo de leitura está sendo construído, como, e.g., na leitura popular latino-americana, nas leituras contextualizadas na África e Ásia. E esse novo modelo, ainda em construção, só pode surgir porque a missão se tornou o critério da interpretação da Bíblia. É claro que os diferentes grupos cristãos acima mencionados têm noções distintas da missão. Em comum, porém, está a crença de que a igreja existe para a missão e que a missão que Deus confiou à igreja não se reduz à salvação de indivíduos, mas se concretiza na salvação de toda a criação, ou, como nos círculos da missão integral se costuma dizer: o Evangelho todo, para todas as pessoas, em todo o mundo, e para a pessoa como um todo – o que inclui a sociedade, a cultura, a economia, a política, o lazer, a educação, etc.
A partir da missão integral, portanto, podemos dizer que se está desenvolvendo um novo modo de ler a Bíblia, ao qual costumo chamar de modelo dialogal.Nesse novo modelo, ler a Bíblia visa construir consensos, ou seja, acordos fraternos sobre como praticar a vontade de Deus na atualidade, Consensos que sejam:
(a) eticamente válidos, pois nem todos os meios são justificados pelos fins – ou, nem tudo que funciona, ou que dá prazer, é justo, é bom, é santo;
(b) cognitivamente verdadeiros, pois nem todas as experiências, doutrinas e conceitos que defendemos passam pelo crivo da Sagrada Escritura; e
(c) pessoalmente verídicos, pois muitas vezes ocultamos a verdade pessoal e institucional atrás das máscaras do poder, do dinheiro, do prestígio ou do saber.

Ler a Bíblia em busca de consensos missionais depende de uma estratégia em que os sujeitos da leitura não sejam mais os indivíduos isolados, os especialistas da técnica, mas sejam todos os participantes da comunidade de fé. Depende de uma estratégia em que as diferentes contribuições de cada pessoa – tenha ela formação teológica ou não – possam ser:
(a) criticamente examinadas, ou seja, que a opinião de cada um seja demonstrada e provada e não apenas apoiada ou aceita por causa da autoridade acadêmica ou política ou espiritual de quem a formula;
(b) livremente apresentadas, ou seja, que cada membro da comunidade da fé possa falar, se expor, apresentar aos demais a sua visão da fé, da vida, da missão, da vontade de Deus conforme ele ou ela a vê na Escritura; e
(c) responsavelmente partilhadas, ou seja, que não se fale apenas por falar, que não se fale apenas a partir do achômetro de cada um, mas que cada participante do diálogo com a Bíblia e a partir da Bíblia, seja responsável em sua contribuição – tendo examinado bem o que leu e o que quer dizer – como os antigos judeus de Beréia que, ao ouvir a explanação da Bíblia pelos missionários cristãos, foram examinar cuidadosamente o valor e a validade da nova forma de ler a Bíblia que a fé cristã estava trazendo.

Traduzindo estas reflexões para a linguagem da prática cotidiana, precisamos aprender a ler a Bíblia com seriedade acadêmica (sem academicismo), ética (sem moralismo) e pessoal (sem individualismo). Ler a Bíblia sem o comodismo do hábito de achar na Bíblia aquilo que nós já sabemos ou sentimos; sem a atitude do especialista – da pessoa que vai aprender o jeito certo para, depois, dizer à igreja qual é a verdade que ela deve crer e praticar; ler a Bíblia sem a preguiça ou o medo de, ao invés de estudar a Bíblia, com todo o trabalho que a leitura exige, ler as leituras que outros fizeram da Bíblia e reproduzir as interpretações já feitas e presentes no comentários bíblicos, nos dicionários teológicos, nos sermões, nos artigos, etc... Nesse modelo, gastar tempo com o texto é muito mais importante do que ler sobre o texto. Nesse modelo, gastamos tempo com o texto na medida em que gastamos, também, nosso tempo com a ação missionária.

Precisamos aprender a ler a Bíblia como quem busca descobrir o tesouro que Deus colocou à disposição da humanidade e de toda a Sua criação, sabendo que aquele que encontrou um tesouro no campo vai, vende tudo o que tem, desfaz-se de seus antigos tesouros, e compra o campo a fim de – junto com todo o povo de Deus – garimpar e encontrar novos e mais preciosos tesouros que Deus tem para nos dar.


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Júlio Zabatiero é Doutor em Teologia e pastor auxiliar da Igreja Presbiteriana Independente da Coloninha. Além disso é professor da Escola Superior de Teologia de São Leopoldo (RS), presidente da Fraternidade Teológica Latino-Americana, setor Brasil, e professor visitante da Faculdade Teológica Sul Americana.

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