quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Não Matarás: Em busca de uma cultura de PAZ...



por Ed René Kivitz



“Não matarás” é o sexto mandamento do Decálogo, que consta da Torah, Lei outorgada por Deus a Moisés como fundamento para a formação da identidade do povo, nação e Estado de Israel. A interpretação do imperativo de não matar deve ser feita no contexto da moldura da tradição judaico-cristã, e deve também levar em consideração o conjunto de princípios que a ele foram somados ao longo da saga do povo hebreu, incluindo a pessoa, vida e obra de Jesus de Nazaré e seus apóstolos.

SETE, SETENTA E SETE

A construção dos limites éticos e morais relativos ao trato da vida humana tem início no primeiro homicídio registrado no Gênesis, quando Caim mata seu irmão Abel. Mesmo antes da Lei Mosaica ser promulgada e conhecida, e mesmo antes do surgimento do Estado de Israel, estava claro que matar consistia pecado diante de Deus, que adverte Caim já afetado pela intenção homicida: “Se você fizer o bem, não será aceito? Mas se não o fizer, saiba que o pecado o ameaça à porta; ele deseja conquistá-lo, mas você deve dominá-lo” [Gênesis 4.7]. Consumado o pecado, Deus amaldiçoa Caim e o faz caminhar errante pelo mundo. Aterrorizado pela sua maldição, Caim reclama com Deus, que lhe faz promessas de preservação da vida: Disse Caim ao Senhor: “Meu castigo é maior do que posso suportar. Hoje me expulsas desta terra, e terei que me esconder da tua face; serei um fugitivo errante pelo mundo, e qualquer que me encontrar me matará”. Mas o Senhor lhe respondeu: “Não será assim se alguém matar Caim, sofrerá sete vezes a vingança”. E o Senhor colocou em Caim um sinal, para que ninguém que viesse a encontrá-lo o matasse.

A vida de Caim passa a valer a vida de sete homens. Não demorou para que a desproporcionalidade do valor da vida se desenvolvesse de maneira cruel: uma vida passa a ser vingada sete vezes e depois setenta e sete vezes. Lameque fala com suas mulheres e se vangloria de sua fúria e poder de destruir: “Disse Lameque às suas mulheres: “Ada e Zilá, ouçam-me; mulheres de Lameque, escutem minhas palavras: Eu matei um homem porque me feriu, e um menino, porque me machucou. Se Caim é vingado sete vezes, Lameque o será setenta e sete” [Gênesis 4.23,24].

OLHO POR OLHO

A Lei Mosaica aparece como um salto qualitativo na preservação da vida humana. Para normatizar e conter esse ciclo de extremada violência, a conhecida Lei de Talião vai estabelecer limites para a reparação dos danos causados nos conflitos sociais: “Se alguém ferir uma pessoa ao ponto de matá-la, terá que ser executado. Quem matar um animal fará restituição: vida por vida. Se alguém ferir seu próximo, deixando-o defeituoso, assim como fez lhe será feito: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente. Assim como feriu o outro, deixando-o defeituoso, assim também será ferido. Quem matar um animal fará restituição, mas quem matar um homem será morto. Vocês terão a mesma lei para o estrangeiro e para o natural da terra. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês” [Levítico 24.17-22].

A Lei de Talião e sua famosa expressão “olho por olho, dente por dente” não é um incentivo à vingança, mas um instrumento de contenção da retribuição exagerada do dano sofrido. Não é uma legitimação da violência, mas uma forma de conter o ímpeto vingativo, que tende à desproporcionalidade do “sete vezes mais” de Caim e “setenta vezes mais” de Lameque. Aquele que teve um boi roubado não pode tomar todo o gado do vizinho, e quem teve um filho morto não matar toda a família do vizinho e ainda tocar fogo em sua fazenda. Esse é o significado da Lei de Talião: não permitir que a pena sofrida pelo infrator seja desproporcional ao dano que por ele foi causado.

NÃO MATARÁS

O sexto mandamento do Decálogo deve ser interpretado nesse contexto. Sua finalidade é estabelecer uma base para o ordenamento das relações sociais. A lei existe para normatizar a vida em sociedade e estabelecer limites para os direitos e obrigações de todos os que convivem e dividem um mesmo espaço. A força da lei está em sua penalidade. Por esta razão, fica também estabelecido que “quem mata, morre” (Êxodo 21.12).

Não são poucos os que acreditam que a partir de Jesus de Nazaré a Lei de Moisés perdeu seu valor. Isso equivale a um engano. Jesus mesmo advertiu: “Não pensem que vim abolir a Lei ou os Profetas; não vim abolir, mas cumprir” (Mateus 5.17), pois, se é verdade que “o homem não foi criado para o sábado, o sábado foi criado para o homem” (Marcos 2.27), não menos verdade que a lei tem por função promover o bem do homem individual e socialmente considerado e, por isso, não deve ser negligenciada.

A legimitidade da lei para a manutenção da ordem social é também afirmada pelo apóstolo Paulo: “Pois (a autoridade) é serva (sacerdote) de Deus para o seu bem. Mas se você praticar o mal, tenha medo, pois ela não porta a espada sem motivo. É serva (sacerdote) de Deus, agente da justiça para punir quem pratica o mal” (Romanos 13.4).

A OUTRA FACE

A compreensão do significado do mandamento “não matarás” recebe nova dimensão com a mensagem de Jesus:

“Vocês ouviram o que foi dito aos seus antepassados: ‘Não matarás’ e ‘quem matar estará sujeito a julgamento’. Mas eu lhes digo que qualquer que se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento. Também, qualquer que disser a seu irmão: ‘Racá será levado ao tribunal. E qualquer que disser: ‘Louco!’, corre o risco de ir para o fogo do inferno. Portanto, se você estiver apresentando sua oferta diante do altar e ali se lembrar de que seu irmão tem algo contra você, deixe sua oferta ali, diante do altar, e vá primeiro reconciliar-se com seu irmão; depois volte e apresente sua oferta. “Entre em acordo depressa com seu adversário que pretende levá-lo ao tribunal. Faça isso enquanto ainda estiver com ele a caminho, pois, caso contrário, ele poderá entregá-lo ao juiz, e o juiz ao guarda, e você poderá ser jogado na prisão. Eu lhe garanto que você não sairá de lá enquanto não pagar o último centavo”. (Mateus 5.21,22)

“Vocês ouviram o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente’. Mas eu lhes digo: Não resistam ao perverso. Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra”. (Mateus 5.38,39)

Jesus oferece uma alternativa para a Lei de Talião e também para o mandamento de não matar. A perspectiva cristã aponta na direção do perdão e da reconciliação: “vá primeiro reconciliar-se com seu irmão”, e também da resposta não violenta: “virar a outra face”.

O apóstolo Paulo, que afirmou a lógica de Moisés quanto à necessidade da lei para a ordem social e legitimou a autoridade que porta a espada para coibir o mal e promover a justiça para o bem comum, também afirma a mesma lógica de Jesus:

“Não retribuam a ninguém mal por mal. Procurem fazer o que é correto aos olhos de todos. Façam todo o possível para viver em paz com todos. Amados, nunca procurem vingar-se, mas deixem com Deus a ira, pois está escrito: “Minha é a vingança; eu retribuirei” diz o Senhor. Ao contrário: “Se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber. Fazendo isso, você amontoará brasas vivas sobre a cabeça dele”. Não se deixem vencer pelo mal, mas vençam o mal com o bem”. (Romanos 12.17-21)

André Chouraqui, linguista e tradutor da Bíblia, ao comentar a recomendação de Jesus no Sermão do Monte a respeito da não-retribuição do mal e da violência, afirma que “o homem perfeito ultrapassa as normas que garantem a ordem social: vive na oblação (oferta) de seu ser a IhvH (Deus), de quem ele reconhece a presença em toda criatura, daí sua renúncia”.

A LEI E O AMOR

Estamos diante de recomendações distintas e aparentemente conflitantes. A primeira, baseada na necessidade da lei, afirma que é legítimo que as autoridades atuem com vigor e até mesmo com o uso da força visando a coibir o mal e promover a justiça para o bem comum. A segunda, baseada na ética do amor, afirma que não devemos resistir o homem mal, sempre responder a violência de maneira pacífica, e jamais pagar o mal com o mal (revogação do “olho por olho, dente por dente” e da penalidade de morte para quem mata).

As duas abordagens podem ser conciliadas na compreensão de que a lei é fator determinante das relações sociais e o amor é fator determinante das relações pessoais. Parece simples, e de fato, bem usual que assim seja praticado. Por exemplo, a ética da lei recomenda que o assassino de uma criança seja julgado e condenado nos termos da legislação de sua sociedade (relação social). Mas, é recomendação da ética do amor que o assassino seja perdoado pelos pais da criança assassinada (relação pessoal).

A afirmação da ética do amor implica um salto qualitativo no coração e na consciência de quem a pratica, sendo essa a grande e extraordinária contribuição da tradição cristã à interpretação e aplicabilidade do mandamento “não matarás”.

MATAR, NÃO; AMAR, SIM

O sexto mandamento, não matarás, deve ser interpretado e aplicado no equilíbrio da ética da lei e da ética do amor. Abrir mão do valor, relevância e necessidade da lei é devolver a sociedade ao mundo de Lameque, quando a maldade do coração humano, ferido e aviltado pela violência e pela injustiça, promovia mais violência e mais injustiça, alimentando o ciclo interminável de vinganças. Abrir mão da ética do amor mantém o coração humano cativo do mal que lhe foi impingido: somente o perdão promove a reconciliação e a restauração do malvado, bem como a libertação e sanidade do vitimado e injustiçado.

À luz desse necessário equilíbrio entre a ética da lei e do amor, podemos afirmar quatro significados presentes nas entrelinhas do mandamento “não matarás”.

1. Não construirás uma sociedade que mata (diferença qualitativa do Egito)

A Lei é outorgada por Deus a Moisés imediatamente após a saída do povo hebreu do Egito. Um povo nascido e criado sob escravidão, oprimido pela força de um império inescrupuloso, está diante da possibilidade de construir uma nação e um projeto de Estado diferenciado em sua ética e seu culto. O mandamento “não matarás” adverte que o modelo do império dominador não pode ser reproduzido, e que a vida humana, e sua equivalente dignidade, deve ser preservada.

2. Não agirás movido pelo ódio (o ódio é péssimo senhor da razão)

Na base da vingança estão o ódio, a mágoa e o ressentimento. Os atos de vingança retribuem o mal com mal ainda maior. Uma consciência ferida e machucada pela violência sofrida é uma péssima senhora da razão.

3. Não farás justiça com tuas próprias mãos (a consciência ferida é um péssimo tribunal)

Assim como a consciência ferida é péssima senhora da razão, também é um péssimo tribunal. Não é possível julgar com justiça quando o juízo é guiado pelo sofrimento e pela dor.

4. Não assassinarás

O consenso dos intérpretes bíblicos faz distinção entre matar e assassinar. Matar em legítima defesa, em estado de necessidade ou no estrito cumprimento do dever legal, para defender a vida contra o mal e a violência, é diferente de assassinar. Assassinar seria, portanto, matar tendo o ódio como motivação, matar por vingança ou para “fazer justiça com as próprias mãos”. Por exemplo, o soldado que mata o bandido que troca tiros com a polícia , mata, mas não assassina; diferentemente do soldado que executa o bandido rendido e com mãos na cabeça. O soldado que executa o bandido se arvora como tribunal, júri e executor da pena, e coloca-se acima da lei e do Estado de Direito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na cruz do Calvário e no corpo ensanguentado de Jesus Cristo vemos a face de um Deus que, entre matar e morrer, escolhe morrer. Tal expressão de amor é o imperativo ético para todo aquele que deseja seguir os passos de Jesus, o Príncipe da Paz.



Fonte: http://forumcristaoprofissionais.com/

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