por Olavo de Carvalho
Quando o sr. Luís Inácio da Silva aceitou ser o chefe de um governo de transição para o socialismo, teria ele plena consciência do que isso significa? Governos de transição revolucionária são como preservativos: começam encobrindo a arma do crime e terminam jogados na privada. Lula representou a face sorridente e amável sob a qual a esquerda ocultava a pesada máquina de guerra das militâncias enfurecidas, das tropas de guerrilheiros, das quadrilhas de narcotraficantes e seqüestradores, dos bandos de delinqüentes comuns adestrados e equipados por técnicos em terrorismo para espalhar o caos nos momentos estrategicamente convenientes. Durante anos, ele administrou com habilidade e prudência uma complexa política de mão dupla, agradando aos capitalistas pelo gerenciamento “ortodoxo” da economia, aos comunistas pela subversão sistemática dos valores morais e educacionais, pela distribuição perdulária de verbas até mesmo a entidades criminosas, pela proteção dada a terroristas estrangeiros em atividade no território nacional e pelo apoio paternal concedido aos tiranetes de esquerda que, nas nações em torno, iam brotando como fungos, fortalecidos pela unidade da estratégia continental do Foro de São Paulo que ele próprio fundara e organizara. Que, jogando com dois grupos de aliados incompatíveis entre si, prometesse simultaneamente a vitória aos antigos e a prosperidade aos novos, logrando persuadir a ambos de sua integral sinceridade, é prova de uma duplicidade de caráter elevada ao estatuto de obra de arte, pela qual, abstraída a imoralidade intrínseca da coisa, ninguém deve lhe sonegar admiração. Ora acirrando as contradições, ora amortecendo-as com um senso agudíssimo do timing e das conveniências, sua destreza no manejo da ambigüidade chegou ao requinte quase inverossímil de atrair sobre sua pessoa galardões contraditórios, fazendo com que, na mesma semana, fosse homenageado no Fórum Econômico de Davos por sua conversão ao capitalismo e no Fórum Social Mundial por sua fidelidade ao comunismo.
Mas é da natureza do jogo duplo acabar por duplicar-se a si mesmo, articulando à oposição entre os pólos em jogo a duplicidade de ritmos necessária a administrá-los. O governante de transição quer, afinal, chegar à meta, apressando sua própria remoção ao depósito de lixo do passado, ou adiá-la indefinidamente, eternizando a promessa de mudança radical e arriscando-se a ser odiado por seus antigos admiradores como aborteiro da revolução? Nesse ponto, o controle do tempo, que no começo era a arma do sucesso, torna-se ele próprio um problema insolúvel. As forças opostas que o próprio governo pôs em movimento já não obedecem ao seu comando: a organização militante acostumada a roubar sob a proteção estatal reivindica o direito à prática do homicídio político, o Poder Judiciário longamente aplacado pelas homenagens verbais à sua independência começa a agir como se de fato fosse independente. O presidente da República nem pode amarrar as mãos assassinas de seus companheiros de ontem, nem tapar a boca do magistrado inconveniente, cansado de ver a lei usada como anestésico do crime.
Os otimistas de sempre podem achar que é uma crise passageira, que o gênio da conciliação, tradição nacional da qual o presidente tem sabido se aproveitar tão bem, acabará por encontrar um subterfúgio inteligente e adiar, uma vez mais, o desenlace do insolúvel.
Talvez tenham razão. O tamanho do território, a consistência tênue e esparramada da sociedade civil, a incultura geral que predispõe à resignação apalermada foram até agora os fatores que permitiram ao sr Lula prolongar no tempo, sem crises nem danos notáveis, a sua querida engenharia da procrastinação. Mas a recusa de decidir é ela própria uma decisão, e tomada repetidas vezes acaba por se consolidar num “estado de coisas” aparentemente imutável, atraindo contra si as mesmas forças de mudança que, no início do processo, aceitaram a conciliação porque esperavam que fosse provisória.
Dizem que o ídolo e modelo do sr. Lula é Getúlio Vargas. Este era, de fato, um artista da indecisão, tática que ele consagrou no lema “Deixa como está para ver como é que fica”. Também é certo que por meio desse artifício logrou articular os incompatíveis e, como disse dele o filósofo José Ortega y Gasset, “fazer política de direita com a mão esquerda”. Mas, quando sua mão direita se moveu, foi para empunhar o revólver com que desferiu um balaço contra o próprio peito. Lula, ao inverso dele, faz política de esquerda com a mão direita. Corre o risco de enforcar-se com a mão esquerda.