sábado, 6 de junho de 2009

O constitucionalismo e a filosofia da história

por Marcus Boeira
Quando uma Constituição se restringe a princípios, sua esfera de suavidade promove o novo, a novidade social, a dinâmica da cultura e a renovação das instituições políticas. Quando não, acaba por determinar artificialmente a finalidade da história, impedindo a novidade e matando a liberdade. Tais constituições, autocráticas de um modo geral, procuram arregimentar a história em sua totalidade, como se os constituintes fossem deuses observando a história de cima, no andar da eternidade. Muitos desses querem, em suma, substituir o Reino de Deus sobre o destino da história.

Há uma unidade e uma diferença entre o constitucionalismo antigo, também chamado de histórico e pragmático, e o constitucionalismo moderno, dogmático e escrito. A unidade do constitucionalismo consiste na relação simbiótica entre a preservação de direitos e liberdades individuais, consideradas "fundamentais" pela ordem jurídica, bem como por um sistema de limitação e contenção do poder político, o que sobrevém como decorrência da necessária preservação das liberdades referidas. À bem da verdade, os direitos individuais e a divisão das funções estatais em poderes distintos e harmônicos constituem a natureza mesma do constitucionalismo, desde sua origem: o corpo político medieval. Na era medieval, a superioridade dos pactos e costumes sobre o Rei não só garantia a prevalência do costume e dos direitos individuais da terra sobre a posição real (law of the land), senão também apareciam como fontes primárias da ordem jurídica vigente. Eis o common law: um sistema jurídico em que os pactos formam o costume, este forma a tradição, e está o próprio direito vigente. Por mais que tal afirmação pareça restrita ao common law inglês, o fato é que mesmo antes do surgimento do direito moderno continental, através das leis fundamentais do reino na França e, posteriormente, com as leis como fontes primárias do direito continental de família romano-germânica, o fato é que o constitucionalismo possui uma raiz medieval e, portanto, pragmática.
Nessa época, a limitação do poder político era antes uma realidade comum nos diversos reinos feudais espalhados pela Europa. Havia, aí, uma adequação do sistema jurídico-político à realidade substancial da comunidade política. O constitucionalismo e a história têm, por assim dizer, uma mesma unidade. O verdadeiro sentido da história era, ao mesmo passo, o telos do sistema jurídico-político. Em suma, a realidade histórica era o nexo de legitimidade necessário para o próprio direito constitucional. E daí, a liberdade social como condição para legitimidade política.
Atualmente, temos constituições escritas. O constitucionalismo moderno é recheado de elos normativos e institucionais, sem os quais não seria possível uma convivência constitucional adequada na sociedade moderna. A influência do sistema romano-germânico legou para o direito constitucional traços indispensáveis para sua definição normativa moderna. Com exceção do direito constitucional inglês (ainda prioritariamente costumeiro), as Constituições da atualidade são "normas jurídicas", escritas, com caráter de eixo estabilizador dos conflitos sociais.
Assim, não obstante a unidade e as diferenças apresentadas entre o constitucionalismo antigo e moderno, como afirma Mc Iwan em sua obra magistral "Ancient and Modern Constitutionalism", o fato é que tal distinção guarda inúmeras diferenças quando às observamos com base na filosofia da história.
A filosofia da história é o campo de inteligibilidade sobre o sentido e a unidade da história entendida em sua totalidade. Sua relação com a eternidade, bem como sua dependência com a mesma e o seu telos constitutivo. Eis os principais vetores da filosofia da história. Assim, se o homem é um bios politikos, como diria Aristóteles na Política, um animal que se realiza na esfera pública política, espaço esse do diálogo e da ação, como completa Hannah Arendt em seu A Condição Humana, de fato o ser humano é também um animal histórico, preso à realidade de seu tempo e de suas circunstâncias. O homem, pelo menos para os cristãos, não é na eternidade ainda por que está atado ao tempo por uma condição que lhe é impossível transcender. Assim, sua realidade circunstancial é um agir de sentido, um agir cujas condições são oferecidas pela comunidade em que vive, bem como pelo tipo de sistema político que lhe dá regência. A regência do poder é o caráter instrumental das possibilidades da vida humana, uma vez que em regimes políticos livres a vida é plena de liberdade, uma liberdade dada pelo Criador. Já em regimes fechados, totais, autocráticos, os espaços são consumados por ideologias e por grupos, menos por homens concretos em suas existências políticas. O bios politikos, nesse caso, é reduzido ao bios enjaulado e sem liberdade, ideológico e artificializado, enfim, um bios com caráter de meio operativo para a concretização total da ideologia programada por homens considerados "iluminados".
Assim, se o constitucionalismo é um modo de articular o poder e a preservação do direito, não há dúvida de que seu caráter substancial precisa estar em conexão com uma existência histórica e política livre, sem o qual não há manifestação ativa do nexo de possibilidades existenciais da pessoa humana concreta.
Em constitucionalismos históricos, como o inglês, por exemplo, que até hoje ainda permanece atado à história e, por sua vez, à realidade social existencial, há uma simbiose entre a filosofia da história e o constitucionalismo, pois o real sentido da história é contemplado por uma tradição constitucional que não procura determinar o fim da mesma, mas adequar-se às novidades e circunstâncias ofertadas pela própria história real. O costume e a tradição são, nesse aspecto, os nexos constitutivos entre o direito constitucional e a realidade política e social.
Reconhece-se no verdadeiro constitucionalismo a impossibilidade para o homem de contemplar a história em sua totalidade. Aceita-se a condição de historicidade e, portanto, de localidade do ser humano. Não há como transpassar ao tempo. Assim, em regimes políticos livres, há um mesmo telos, não um fim originado por homens nem por constituições, mas pela própria Substancia da história: Deus eterno.
No constitucionalismo moderno, com textos constitucionais escritos e dogmáticos, há uma necessidade de se predeterminar certos comportamentos sociais e políticos. As Constituições modernas são documentos voltados para a estruturação de um sistema de liberdades com vistas à organização do Estado. Trazem em seu bojo parte do sentido e da finalidade da vida humana em sociedade.
Nesse sentido, considerando que o fim e o sentido da história não podem ser determinados por inteligências meramente temporais, pois que não alcançam a totalidade da história, conclui-se que qualquer juízo sobre o sentido da história precisa estar preso a uma inteligência que transcenda a própria história e que a contemple na totalidade, prefigurando como alfa e como ômega da história mesma em sua inteireza. Em suma: só uma inteligência eterna poderá determinar o sentido e a finalidade da história, enxergando-a como ser vinculado ao tempo. As relações entre o ser e o tempo são analogamente estruturadas a partir de uma conexão entre a própria eternidade e a história, não se podendo pensar nada que esteja em mudança (e, portanto, no tempo) senão dentro dessas condições.
As constituições escritas da modernidade podem, salvo a dos EUA (por ser histórica e pragmática, ainda que seja escrita - common law escrito), se transformar em documentos jurídico-políticos que, quando não articulados com a realidade existencial concreta da sociedade política, antecipam um juízo constituinte sobre o fim da história, prescrevendo antecipadamente comportamentos e regras sociais utopicamente pensados. Em algumas dessas Constituições modernas a ideologia precede a realidade e, desse modo, a prescrição acaba por gerar determinismo e artificialismo sobre a história concreta de algumas sociedades.
Não obstante isso, as constituições escritas possuem dois tipos normativos bem claros: valores da existência, isto é, símbolos representativos da natureza humana universal e que, portanto, são princípios essenciais do ser humano, bem como princípios relativos às culturas locais, somente contemplados à luz de uma comunidade política específica. Assim, existem constituições escritas voltadas de modo mais forte para os valores universais da existência humana histórica e politicamente considerada, valores esses compatíveis com uma filosofia da história que aceita livremente as mudanças operadas nas contingências e particularidades de determinada comunidade política particular, bem como constituições que procuram determinar o sentido inteiro da história a partir de elementos específicos, sem caracteres de universalidade.
Quando uma Constituição se restringe a princípios, sua esfera de suavidade promove o novo, a novidade social, a dinâmica da cultura e a renovação das instituições políticas. Quando não, acaba por determinar artificialmente a finalidade da história, impedindo a novidade e matando a liberdade. Tais constituições, autocráticas de um modo geral, procuram arregimentar a história em sua totalidade, como se os constituintes fossem deuses observando a história de cima, no andar da eternidade. Muitos desses querem, em suma, substituir o Reino de Deus sobre o destino da história.
Portanto, fica um impasse: como tais constituições acompanham a dinâmica de uma sociedade? Diversos textos ocidentais possuem o que chamamos processo de reforma constitucional, ou seja, normas que contemplam a mutabilidade constitucional com vistas a uma adequação à realidade existencial. No entanto, os graus de estabilidade e de legitimidade derivados dessas mutações são discutíveis à luz da filosofia da história, uma vez que, ainda que as variações e mutações sejam normais na própria definição da realidade história, há uma mesma substância agente na história, um motor imóvel do e no tempo, que é eternamente. Nesse sentido, qualquer texto que procura a perfeição, por mais que o fim do direito seja a justiça, terá o problema de articular o fim da história com o objetivo da própria constituição.
Se entendermos que constituição é "necessariamente um documento escrito", estaremos admitindo sua possível insuficiência em predeterminar o sentido da história, pois se não se adequar à realidade existencial correrá o risco de utopizar a sociedade, fazendo-a engolir uma determinada ideologia a ferro e fogo. Os totalitarismos constitucionais são hábeis nessa arte. Se analisarmos a Constituição da Venezuela, por exemplo, é uma Carta até bonita em princípios, mas sua estrutura institucional fora alterada, nos últimos anos, para permitir que a barbárie se institucionalize pelo direito, tal como ocorreu com o nazismo ou o marxismo soviético.
O detalhe é que constituições escritas são armas poderosas para aqueles que almejam predeterminar o futuro da sociedade com base em suas teorias ideais. Podem servir como documentos antecipadores do fim da história e, diante disso, como instrumentos para progressiva tomada do poder por grupos e partidos dispostos a estabelecer suas pretensões ideológicas no campo do "political realism", este tão insistentemente tratado por autores como Gaetano Mosca ou Vilfredo Pareto. Para esses, todo sistema de poder resulta, em última análise, em uma direção política promovida por uma elite dirigente.
Diante disso, o problema das constituições totais está na ausência de uma conexão entre o sentido da história e a formulação normativa de seus textos. Pois, para que o sentido da história seja preservado por uma constituição, importante é que ela promova a liberdade para que os homens concretos atuem na história e, assim, possam ser determinados não por um texto feito por homens, mas pelo Livro da Vida, diário de Deus para a humanidade.
Fonte: Mídia Sem Máscara

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