sábado, 18 de outubro de 2008

Machado de Assis e a Condição do Ser Humano (Teologia)...


O texto é um pouco longo, mas vale a pena ler. É um diálogo entre a literatura e a teologia.

Estudar as obras deste fantástico escritor é algo indescritível. Mas poucas pessoas conhecem o outro lado de Machado. O seu lado teológico ou quem sabe o seu lado observador do ser humano.

Na sua obra “Dom Casmurro” Machado revela o que ele entendia sobre o ser humano. Este simples fato de "ser" já é de causar um espanto. Machado mostra o dualismo do ser humano. A forma antagônica de viver e de se relacionar. Esta é a grande tensão da vida humana – abrir mão de algo que é essencialmente seu para que o outro lado mais puro seja desenvolvido. O próprio autor do livro Dom Casmurro já revela um lado humano – o isolamento. O estado que o ser humano mais gosta de ficar quando passa por dificuldades ou quando quer esconder algo.

Para uma contextualização do livro, segue abaixo os personagens principais:

- D. Glória (mãe de Bentinho);

- Bentinho;

- Capitu;

- Ezequiel de Souza Escobar;

- Sancha;

- Capitolina (filha de Escobar e Sancha);

- Ezequiel (o grande dilema);

Para quem conhece o livro sabe da imensa crise em julgar se houve ou não a traição de Capitu com Escobar. Um grande mistério. É neste mistério que se revela o ser humano apresentado por Machado de Assis.

Bentinho dizia que Capitu tinha olhos de ressaca. Capitu tinha os olhos verdes e bonitos. Mas este adjetivo de olhos de ressaca se dá pela profundidade e o desejo do olhar de Capitu. Para quem conhece a ressaca do mar sabe do que tento descrever. Na ressaca do mar as ondas são inesperadas. Elas vêm com um impacto muito forte e não se preocupam com as conseqüências. Quando ela volta para o mar leva tudo consigo. Tudo que neste impacto ela quebrou as ondas levam para o fundo do mar. Bentinho descreve o olhar de Capitu desta forma. Era um olhar arrebatador.

Bentinho e Escobar se conheceram no seminário. D. Glória desejava muito que seu filho fosse sacerdote. Bentinho não tinha isso como vocação. Os dois abandonam o seminário e continuam com a bela amizade. Bentinho um advogado promissor e Escobar um comerciante bem-sucedido. Bentinho casa-se com Capitu. Este era um amor de infância e muito esperado por Bentinho. Escobar casa-se com Sancha grande amiga de Capitu. Os casais ficam muito próximos. Era uma amizade muito intensa. Quase que diariamente estavam na casa um do outro. Bentinho percebe que Capitu estava muito próxima de Escobar. Os dois gostavam de ficar sozinhos. Surge então as dúvidas – será que está acontecendo alguma coisa entre os dois?

Bentinho e Capitu desejam muito um filho, mas Escobar e Sancha têm a oportunidade de serem pais em primeiro lugar. O nome da filha é Capitolina em homenagem a grande amiga Capitu. Depois de um certo tempo Capitu engravida e concebe um filho muito lindo de olhos azuis. Mas Bentinho não tinha olhos azuis, mas sim Escobar. A criança tem todos os traços de Escobar. Bentinho fica paranóico principalmente quando a sua mãe deixa de freqüentar a sua casa. A mãe sempre percebe alguma coisa. A partir disso a história fica ainda mais envolvente. Machado começa a mostrar o monstro que há no ser humano. E a imensa tentativa que o ser humano faz para dominar este lado negro. Bentinho tenta matar a criança com um veneno, mas muda de idéia e fica perplexo consigo mesmo por ter cogitado tal possibilidade. Numa tentativa de fugir da realidade tão escura, ele manda Capitu e seu filho para a Europa. Machado mostra a dificuldade que o ser humano tem em lidar com crises que mexem com a esperança e a estrutura da vida. Bentinho se lança na vida promíscua e passa a sair com várias mulheres. Neste sentido é possível lembrar de Santo Agostinho que buscava no seio das mulheres aquilo que sua alma tanto almejava – o sentido da vida e a satisfação da alma.

A tentativa que Machado faz com excelência é mostrar o outro lado do ser humano que tanto temos medo de conhecer. Uma outra questão é a forma misteriosa que é a vida humana. Ninguém gosta de revelar aquilo que é e aquilo que faz. A condição humana é se envolver num manto intransponível. Bonhoeffer já dizia na sua obra sobre Ética que nem tudo pode ser falado e revelado. A vida pede o mistério. O escondido é a própria forma de Deus se manifestar – ele se revela e se torna mistério. Assim é a sua criação.

Machado vai tocar profundamente no âmago da condição do ser humano. Dom Casmurro pode ser considerado o “livro do desassossego”. O desassossego essencial que perpassa todo o escrito, trazendo a cena a real desestrutura humana que em sua miserável condição de pecado revela o seu lado noturno e sua situação de miserabilidade.

Machado vive no final do século XIX e inicio do século XX. Tanto ele na sua época quanto esta época experimenta um tempo da imperfeita condição humana que proporciona por um ar de descontentamento constrangido o real estado de ser – pois fere o ego de um homem que se pensa livre e capaz de criar projetos de felicidade – aniquilando e demonstrando que todo esse processo técnico e cientifico que inventa um mundo agradável de ser vivido não passa de uma falsa maquiagem de um homem que não consegue nem por um minuto olhar para dentro de si mesmo e perceber quem ele realmente é.

Machado na sua obra tenta mostrar que a consciência tanto de homens e mulheres é uma consciência alienada da sua própria condição. É a continua simulação da existência, feita por homem que tem na agenda do seu dia a fundamental preocupação de negar a sua própria fraqueza, e se escondendo atrás das maquiagens que o mundo vende. Assim aconteceu com Bentinho, ele mandou a família para a Europa, mas precisava fingir que visitava a família por causa da sociedade. Ele adquiria um falso bem-estar – sossegando da existência a partir da negação da realidade. Bentinho e todo o seu círculo de amizade criam uma falsa condição de bem-estar que maquia a realidade e funda uma consciência alienada daquilo que somos e vivemos. O contexto social de Machado indica que a situação humana não muda. Naquela sociedade moderna e higienizada que coloca debaixo dos tapetes da existência a sujeira que é parte essencial dela mesma. Tanto naquele quanto neste contexto, as pessoas não sabem lidar com os invernos da mutação da sua condição de ser – é preciso anular algo para que a vida possa ser melhor.

Numa pequena percepção é possível entender que Machado de Assis é o abridor das sarjetas da alma que tem a coragem de colocar o dedo na ferida e assumir a verdadeira condição humana. Uma coragem machadiana de ser contraditório e não querer fugir das questões sombrias de sua própria existência. Refletindo sobre a obra de Dostoievski, o filosofo Leandro Konder na sua obra Sobre o amor diz que: “se nos detivermos na contemplação confortável das nossas qualidades não teremos nenhuma possibilidade de analisar nosso lado noturno e não aprenderemos a lidar humanamente com ele”. Esse lado noturno de nós mesmos que abre as nossas vidas para a sombra da contradição que sempre nos acompanha. Não assumi-la é assumir o mundo das máscaras e dos sorrisos falsos. Citando novamente Dostoievski, autor este que Machado gostava muito de ler, Dostoievski disse o seguinte na sua obra “Memórias do Subterrâneo”: “o ser humano é tão complicado que nele há coisas que ele teme revelar até a si mesmo”.

Assim Machado genialmente descreve a real condição humana – o medo de lidar com aquilo que cria uma imensa tensão em nós – por isso Machado preserva tanto o mistério da vida – os segredos do coração do homem.

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