quinta-feira, 9 de julho de 2009

João Calvino: O Teólogo da Vida...


Calvino estava inserido num estado social dualista. Sem dúvida que o pensamento social e humano que Calvino desenvolveu tem gerado mudanças no mundo dos pensamentos e concepções. O reformador submetia o seu intelecto perante a face de Deus. Neste sentido, a sua teologia valoriza a vida humana. Para Calvino não é somente o ser humano que deve ser honrado por possuir a semelhança à imagem divina, mas também o mundo como uma criação divina. A teologia que ele elaborou dava proeminência ao grande princípio de que há uma graça particular que opera a salvação e também uma graça comum pela qual Deus, mantendo a vida do mundo, suaviza a maldição que repousa sobre ele, suspende seu processo de corrupção, e assim permite o desenvolvimento de nossa vida sem obstáculos, na qual glorifica-se a Deus como Criador. [1]
A compreensão da vida social para Calvino é baseada na interpretação bíblica. Todo tipo de engajamento visa cumprir o mandamento divino. Zelar, cuidar, honrar e respeitar a vida humana e tudo o que implica o bem-estar do homem era o alvo deste servo de Deus.
A Reforma Protestante ocorrida no século XVI não foi somente um movimento espiritual e eclesiástico. Teve também aspectos e dimensões políticas e sociais. Calvino, muito mais que Lutero, se debruçou sobre o tema social e o valor da vida humana.
João Calvino lutou para que a sociedade tivesse uma vida melhor. Pregou contra a opressão religiosa. Contra as guerras. Contra as heresias. Contra o desemprego. Contra a desigualdade. Contra a miséria. Este homem fez valer o nome de cristão. Possuía uma fé ativa.
Calvino tinha uma leitura social e humana perspicaz. Em 1535, ele fundou o Hospital Geral, destinado a dar assistência aos enfermos, aos pobres, aos órfãos e aos idosos.


Dois fatos são suficientes para impressionar vocês com a veracidade disto. Durante a terrível peste bubônica que certa vez devastou Milão, o amor heróico do Cardeal Borromeo distinguiu-se brilhantemente na coragem que ele manifestou em suas ministrações aos moribundos; mas durante a peste bubônica, que no século XVI atormentou Genebra, Calvino agiu melhor e mais sabiamente, pois não apenas cuidou incessantemente das necessidades espirituais dos doentes, mas ao mesmo tempo introduziu medidas higiênicas até então incomparáveis, pelas quais as ruínas da praga foram interrompidas. [2]


Existia no contexto de Calvino exclusão social e desigualdade em todos os níveis. Em consideração à penúria de víveres, a pobreza de uma parte da população e a avareza de outros, medidas de ordem econômica foram tomadas imediatamente contra o monopólio e a especulação para colocar os produtos básicos da alimentação ao alcance de todas as pessoas.
Calvino desenvolveu a sua teologia dentro de um ambiente contaminado pelo caos. Genebra e quase toda Suíça viviam uma crise de todas as (des) ordens possíveis. A sua teologia é prática e se voltava para o povo. No seu diagnóstico, Calvino tentou criar um sistema ou um ambiente de vida em que todos pudessem mudar para melhor. A situação de Genebra era lamentável. Havia muita pobreza. Impostos agravados e pesados. Os trabalhadores eram oprimidos por baixos salários e jornadas extensas de trabalho. O número de analfabetos era altíssimo. Carecia de assistência social em toda parte. Os bêbados dominavam as ruas. A prostituição era uma forte marca da cidade. Essa era basicamente a situação que Genebra se encontrava antes da Reforma.
Para Calvino o elemento do mal social era a rebeldia do homem. O pecado introduziu perturbações profundas na sociedade. Calvino entendia que o caos econômico é causado pela ganância dos homens, e pela incredulidade de que Deus haverá de nos suprir as necessidades.
Uma indignação permeava o coração de Calvino. Ele faz uma denuncia contra os pecados sociais, exemplo: estocagem de alimentos (trigo), monopólios e a especulação financeira, como tendo a origem no egoísmo e na avareza do homem. Ele denunciava aqueles que preferiam deixar que o trigo se deteriorasse em seus celeiros, para que ali fosse devorado por bichos, e apodrecesse, ao invés de ser vendido, quando a necessidade do povo se fazia sentir. [3]
Um outro aspecto da teologia deste reformador é o combate a todo tipo de indolência e vida ociosa. Para a valorização do ser humano, ele mesmo precisa se sentir valorizado. Então, a teologia que Calvino desenvolve tem uma complementação no que tange a vida humana – a questão do trabalho. O reformador entendia que o homem deve viver do suor do seu trabalho. Uma posição bíblica. Portanto, o trabalho é algo eminentemente digno, pois é a realização da vontade de Deus para o homem. Assim, o homem não se realiza plenamente, senão no trabalho, visto que foi para isso que foi criado e vocacionado. Por isso, existia uma pregação veemente contra o desemprego. Privar o homem do seu trabalho é pecado contra Deus – pois o trabalho é dom de Deus, e o dever que ordenou ao homem, ensinava Calvino. Quem fecha uma porta de emprego para uma pessoa, é o mesmo que tirar a vida de quem busca o emprego. Pois todo o homem depende dia a dia do seu labor para o pão. Ele precisa sustentar a sua família. Assim, promover o desemprego, na opinião de Calvino, seria um atentado à vida humana, e, portanto, um pecado contra o próprio Deus – “Não matarás”. [4] Calvino faz um destaque, por mais que a pessoa esteja necessitada de um emprego o patrão nunca poderá inferiorizá-la. Calvino traz a luz para o relacionamento empregado e empregador a Epístola de Tiago, em que todos estão no mesmo nível. Se o empregado tem um senhor, o empregador deve entender que existe o Senhor dele, e este é justo na sua ação. Sendo assim, ninguém deve defraudar o outro. O empregado deve se dedicar ao trabalho e o patrão deve pagar dignamente o seu empregado pelo trabalho exercido.


Por causa desse significado espiritual e ético conferido ao salário, o produto do trabalho não pertence, portanto, mais ao patrão que ao operário, ambos sócios na atividade comum. Em conjunto, recebem o produto como a recompensa providencial de seu esforço. Patrões e empregados são, em conjunto e igualmente, devedores de Deus segundo os dons que receberam e puseram em atividade, sem mérito maior para uns ou outros. Devem, portanto, repartir esses frutos de comum acordo, livremente, mas levando em conta a contribuição inicial e a responsabilidade de cada um. Disso decorre que não se trata simplesmente de regular-se pela lei da oferta e da procura, sem qualquer outra consideração ética. E mesmo que tal ética jamais haja sido aplicada à letra, é sua orientação espiritual que importa observar. A negociação, aqui como em qualquer lugar, deve ocorrer. A negociação é um princípio social superior, que deriva diretamente do fato de que nenhum fator econômico é sozinho, dono do que produz em conjunto com os outros. O produto permanece sinal concreto da graça de Deus, um dom a partilhar. [5]


O destaque aqui é que Deus considera como roubo não somente o que o homem detrai das posses do próximo, mas ainda tudo o de que o priva, em recusando-lhe o que lhe deveria prover da parte de Deus. Todo bem que deveria servir ao proveito do próximo, e é retido ou desviado, é por Deus considerado como uma posse fraudulenta. Privar o próximo daquilo que Deus lhe pretende conferir é cometer um confisco às suas expensas e uma ofensa contra Deus. Portanto, a ação que a igreja pastoreada por Calvino teve foi a seguinte:


O protestantismo de tradição reformada alfabetizou o homem da sua época, dando-lhe acesso a um mínimo de instrução. Libertou-o de uma série de vícios danosos à sua saúde, nocivos à sua capacidade de trabalho, e o conduziu às virtudes de uma vida sóbria. Integrou o homem em uma comunidade, que é também um grupo de ajuda mútua. Ensinou que o homem deve buscar seu papel social como uma vocação, um chamado de Deus. Entendeu que a atividade econômica e financeira deve ser um direito de todos, sem privilégio ou exclusividade por parte do Estado ou da Igreja. [6]


Em diversos comentários e sermões, Calvino afirmava que a escravidão era absolutamente contrária à ordem natural correspondente aos desígnios de Deus. Demonstrava que essa ordem fora e continuava sendo degenerada pelo pecado dos homens. O reformador continua:


“Ainda que os primeiros que hajam sido escravizados”, escrevia, “tenham sido oprimidos por direito de guerra ou porque a pobreza os haja constrangido, é absolutamente certo que a ordem da natureza se corrompa violentamente”. “E, se bem que seja útil que uns superintendam outros, conviria mais, todavia, preservar uma condição de igualdade entre irmãos”. O reformador insiste, também, sobre o fato de que a liberdade dos escravos é muito freqüentemente de tal sorte explorada que os libertos tombam para situação pior que a anterior. Por isso, ajunta, o Antigo Testamento prescreve que o escravo emancipado deve receber, no momento da libertação, toda a ajuda necessária para a assunção de sua plena liberdade. E o ensinamento do Novo Testamento e de São Paulo em particular, prossegue, confirma o do Antigo. Ele nos esclarece que a escravidão, “contrária a toda ordem natural”, é, com muito maior razão, oposta à ética cristã. Mas, acrescenta ainda o reformador, a ordem da sociedade não pode ser mudada, enquanto os próprios crentes não se ajustarem à Palavra de Deus de forma muito estrita, para deslanchar as transformações necessárias da ordem política. Caso contrário, esta permanece “a ordem de Deus perturba”. [7]


Veementemente Calvino lutou contra todo sistema desigual. Havia desvios e sonegação. Muitos empregadores não pagavam os funcionários corretamente, e a mulher sofria preconceitos e tinha o salário menor do que o homem.


O trabalho dos homens e mulheres de nosso tempo perdeu sua dignidade. Essa dignidade é a que Deus lhe confere fazendo-o uma vocação pessoal, da qual cada indivíduo é responsável perante ele. Essa vocação é fundamental da responsabilidade inalienável de todo trabalhador e de toda trabalhadora, seja qual for sua ocupação (e desde que evidentemente esse trabalho seja moralmente honroso e socialmente tolerável). [8]


Calvino interveio junto aos seus colegas para que a ética da justa remuneração fosse aplicada na sua cidade. Naquela época, como na maioria dos países vizinhos, a população atravessava um período difícil que era caracterizado por alta generalizada do custo de vida. Os salários não acompanhavam essa elevação.


O salário concedido a todo trabalhador é, portanto, a expressão tangível do salário gratuito com que Deus privilegia a obra de cada indivíduo. Assim, por mais profano que seja, o salário se reporta à obra de Deus. Expressa de forma visível a intervenção de Deus em favor da frágil existência humana. Além disso, porque esse salário é o sinal da graça de Deus, não pode ser considerado como favor, que o dono do trabalho possa dispor como bem lhe prouver. Dando ao trabalhador a remuneração de seu trabalho, o dono nada mais faz que transferir ao próximo aquilo a que este tem direito da parte de Deus. [9]


A marca da teologia deste humanista era que cada ser humano deve usufruir direitos iguais, com a liberdade de dedicar-se à atividade criadora. E seu trabalho produtivo deve exercer-se na solidariedade, o que determina que a liberdade seja dominada em favor de uma justa redistribuição (mas não estritamente igualitária obrigatoriamente) das riquezas produzidas, já que estas foram elaboradas a partir de recursos gratuitamente postos por Deus à disposição de todos. [10]
A Bíblia condena quem quer que seja de abusar do trabalho de outra pessoa. A função da Igreja é a de denunciação e a de anunciação. A Igreja tem de denunciar todas as estruturas pecaminosas que oprimem e escravizam os seres humanos. Algumas vezes, a voz da Igreja pode ser a única que tenha condições de falar abertamente. A Igreja tem o dever de anunciar a vinda do reino de Deus, as possibilidades de uma ordem mais justa, mais humana e mais segura. [11]
Este conceito é admirável. Deus contempla o que Deus fez. Deus observa que as criaturas humanas de Deus são imagens da própria pessoa de Deus. Deus observa que elas refletem a Deus, que elas são a imagem de Deus, que elas são semelhantes a Deus. Deus se deleita nisso. Isso serve de base ao amor de Deus. De fato, Deus se deleita em todas as suas obras. Mas os seres humanos se destacam das outras criaturas pelo fato de que eles refletem as próprias perfeições de Deus. Conseqüentemente, maltratar um de nossos semelhantes é maltratar uma daquelas criaturas com as quais, acima de tudo, Deus se deleita. Na realidade, é verdade que a exigência de justiça se baseia em nossa própria natureza – especialmente, no fato de que ser um ser humano é ser uma criatura que mantém aquela relação especial de imagem de Deus. Calvino disse algo penetrante:


Os homens são, de fato, indignos do cuidado de Deus, se leva em consideração somente a eles mesmos. Mas, visto que eles carregam a imagem de Deus gravada neles, Deus mesmo é violado nos seres humanos. Assim, embora eles não tenham nada deles mesmos pelo que possam obter o favor divino, Deus olha para seus próprios dons neles e, dessa maneira, é levado a amá-los e a cuidar deles. Contudo, deve-se observar cuidadosamente essa doutrina, visto que ninguém pode prejudicar seu irmão sem ferir a Deus mesmo. Se essa doutrina estivesse fixada mais profundamente em nossa mente, relutaríamos mais quando fossemos praticar algo danoso. [12]


Mas qual é o modelo do pensamento de Calvino nesse ponto? Calvino gostava de empregar a metáfora do espelho: ser um ser humano é refletir Deus. Mas em que aspectos nós refletimos Deus? E quais são precisamente as exigências de justiça e caridade baseadas neste ato de refletir? O pensamento de Calvino é o de que, claramente, maltratar o espelho significa maltratar o que ele reflete – maltratar o ser humano é maltratar a Deus. [13]
Para Calvino, a necessidade de igualdade e a necessidade de caridade estão fundamentadas no fato de que ser um ser humano é ser um ícone vivo para Deus e, como tal, possuir uma dignidade que está além dos papéis que desempenhamos e além das finalidades que buscamos.
Portanto, com a clareza deste ensino é possível destacar três pontos importantes para o relacionamento com a criação:


1) A nossa responsabilidade para com todas as criaturas humanas deve ser igual a nossa relação com toda a criação de Deus. Independe da sua posição política, classe social, de sua nacionalidade, de sua religião ou de qualquer outra coisa, mas no fato de que são criaturas de Deus;
2) A imagem e semelhança de Deus – imago Dei – está impressa em toda criatura humana. Sendo assim, aquele que despreza e inferioriza a outra pessoa comete um atentado contra o próprio Deus;
3) A distribuição do poder de Deus é para todos. Todo ser humano exerce o mesmo poder e domínio sobre a criação, isso quer dizer que ninguém poder exercer o direito de dominar ou oprimir outra criatura humana.


Conclusão


Toda a criação caiu com o pecado e está agora sob a ação redentora de Cristo, que é o Senhor tanto da Igreja quanto da sociedade. Os cristãos devem lutar hoje para manifestar a presença do reino de Deus, embora a sua plenitude somente se alcançará com o retorno de Cristo. Somos salvos para servir. Os cristãos devem se infiltrar em todas as esferas da sociedade para chamá-la ao arrependimento e à conformação às normas do reino. A Igreja é um centro de arregimentação e treinamento de pessoas que se reformam para reformar. Assim viveu João Calvino. Este é o seu legado. Sigamos o seu exemplo de vida. Calvino nos ensinou que o evangelho não é uma doutrina de língua, mas de vida.




[1] KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2003. p. 38.
[2] Ibid., p. 127.
[3] NICODEMOS, Augustus Lopes. Calvino e a Responsabilidade Social da Igreja. São Paulo: PES. pp. 8-9.
[4] Ibid., pp 12-14.
[5] BIÉLER, André. A Força Oculta dos Protestantes. São Paulo: Cultura Cristã, 1999. p. 129.
[6] CAVALCANTI, Robinson. Cristianismo & Política. Viçosa: Ultimato, 2002. p. 138.
[7] BIÉLER, André. A Força Oculta dos Protestantes. São Paulo: Cultura Cristã, 1999. p. 101.
[8] Ibid., p. 215.
[9] Ibid., p. 129.
[10] Ibid., p. 118.
[11] MCKIM, Donald K. Grandes Temas da Tradição Reformada. São Paulo: Pendão Real, 1998. p. 349.
[12] Ibid., p. 275.
[13] Ibid., p. 274.

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