Quando nossos livros de história descrevem acontecimentos passados, eles procuram estabelecer uma conexão de causa e efeito entre os fatos. Muitos autores modernos seguem o modelo de interpretação proposto pelo filósofo alemão Hegel. Ele entendia o mover da história como a sucessão de tese, antítese e síntese. Em sua visão, o consenso alcançado na síntese de um processo histórico é o ponto de partida de um novo conflito. Mais cedo ou mais tarde, uma configuração histórica gera forças que lhe fazem oposição até se acomodarem em uma nova síntese. Assim, a espiral da história humana se repete em constantes revoluções e, lentamente, se move pelo tempo. Por meio de tais encadeamentos dos fatos, o historiador tenta compreender e interpretar o passado.
Neste ponto importa lembrar que, como cristãos, ousamos divergir da leitura histórica à nossa volta. Das Sagradas Escrituras aprendemos a perceber a mão divina a guiar o desenrolar dos fatos, ainda que ela nem sempre seja plenamente perceptível. Todavia, o povo de Deus sempre ousou ler sinais da intervenção divina em nossa história. Israel, um povinho à margem da história, aprendeu a ver a mão forte do Senhor quando foi resgatado da escravidão no Egito. O punhado de discípulos também percebeu a mão divina quando da majestosa ressurreição de Jesus. Por isso a historiografia bíblica é tão diferente das crônicas do seu tempo. Ela não conta a história dos grandes, mas a dos pequeninos. Fala de andarilhos e peregrinos guiados por Deus em uma história com rumo e destino — a história da salvação.
Nessa perspectiva, não precisamos negar os condicionamentos históricos que influíram nos acontecimentos que o povo de Deus viveu. Mas ousamos afirmar que condicionamentos passados e a lei de causa e efeito não bastam para explicar o processo histórico. Este não é o resultado da mera evolução dos fatos históricos precedentes. Assim, cremos que a história do nosso mundo é primordialmente condicionada pelo futuro que Deus, em sua graça e bondade, lhe quer conceder.
É nesta perspectiva que convido você, caro leitor, a olhar para a Reforma Luterana. Sem querer menosprezar o estudo pormenorizado da conjuntura da época, aventuro-me a ver nela uma visível manifestação da intervenção de Deus na história. Nela, antes de mais nada, o Senhor corrige e reorienta o rumo da caminhada do seu povo, da cristandade.
Ao iniciar-se a Reforma do Século XVI, ao final da Idade Média, o cenário europeu era marcado pela implementação do comércio, que fortaleceu as cidades e a burguesia. Os camponeses estavam profundamente insatisfeitos com a condição de semi-escravatura à qual estavam sujeitos há séculos. Os investimentos ousados na navegação transcontinental sinalizavam a emergência dos estados nacionais. E, nas universidades, o humanismo renascentista gerava espaço para um pensamento independente da dominação eclesiástica. Inserida de maneira multiforme neste ambiente, a Igreja Ocidental, sob o comando de papado romano, vivia um momento de opulência decadente. Para poder erguer as magníficas edificações que adornam o Vaticano, os papas da época viviam mais preocupados com o levantamento de fundos do que com a vida espiritual da igreja. Assim, o cenário histórico do início do século XVI assemelhava-se a tambor de combustível. Bastaria uma faísca para provocar uma explosão.
Foi o que aconteceu na remota cidadezinha de Wittemberg, na Alemanha. Em 31 de outubro de 1517, na minúscula universidade, um professor da Bíblia, o monge Martinho Lutero, afixou na porta da Igreja do Castelo uma folha com teses para um debate. Tratava-se de um expediente acadêmico da época, cujo processo de formação rotineiramente incluía debates públicos. Mas as 95 teses do Debate para o Esclarecimento do Valor das Indulgências não ficaram restritas a isto. Multiplicadas aos milhares pela imprensa recém-aperfeiçoada por Gutemberg, elas foram divulgadas por toda a Europa em poucas semanas, inclusive na distante Espanha. Quem ficou mais abismado com esta repercussão foi o próprio monge Lutero. Anos mais tarde ele diria que, se soubesse em que Deus o estava envolvendo, jamais teria ousado vir a público com sua opinião.
Em seu tratado contra a prática das indulgências, Lutero expôs o que Deus lhe ensinara nos anos anteriores. Em meio a muitas angústias e tormentos, ele tornara-se um aprendiz das Sagradas Escrituras. Ainda que somente três anos mais tarde, em 1520, o reformador escreveria seus livros mais conhecidos (Da Liberdade Cristã, Do Cativeiro Babilônico da Igreja e À Nobreza Cristã), suas 95 teses já delineavam claramente a redescoberta do evangelho com que Deus o agraciara: “Jesus Cristo é o cabeça da igreja a quem os cristãos devem seguir com alegria através de punição, morte e inferno” (tese 94). Por meio dele recebemos “o verdadeiro tesouro da igreja, o santíssimo evangelho da glória e da graça de Deus” (tese 62). Por meio da fé neste evangelho da graça “qualquer cristão que em verdade experimentou arrependimento tem direito à remissão total de punição e culpa” (tese 36).
A mensagem da justificação do pecador por Cristo somente, isto é somente pela graça, somente pela fé e somente amparada pelo testemunho da Escritura correu a Alemanha e a Europa. Ela tirou a fé e a vida cristã do domínio eclesiástico. O clero e os conventos deixaram de ser o ideal de vivência da fé.
A vida cotidiana no lar e na sociedade se tornariam lugar de adoração e vivência cristã, lugar de ministério do sacerdócio geral de todos os crentes. Os escritos e sermões de Lutero, apesar de proibidos e excomungados, eram lidos em segredo até em conventos. Despertadas e animadas pelo poder do evangelho em toda parte da Europa, pessoas, comunidades, cidades e até regiões inteiras atreviam-se a sair do cativeiro babilônico da igreja e a ensaiar passos da liberdade cristã.
Isto não quer dizer que a Reforma Luterana foi um mar de rosas nem que Martinho Lutero foi um servo de Deus sem pecado. Do parâmetro bíblico, sabemos que as pessoas que Deus usou para intervir na história, até mesmo o “homem segundo o coração de Deus” (o rei Davi), eram falíveis e carentes da graça. Da mesma maneira, a misericordiosa intervenção de Deus na história pela Reforma Luterana é acompanhada pela sombra da fragilidade humana, que se evidenciou, por exemplo, na Guerra dos Camponeses (1524-1525). Nela o conflito teológico com a ala radical da Reforma veio a mesclar-se com as crueldades desta guerra sangrenta, praticadas tanto pelos exércitos da nobreza como pelas hordas camponesas.
Mais tarde, os evangélicos enfrentaram corajosamente o imperador Carlos V na reunião do parlamento das nações alemãs com a Confissão de Augsburgo (1530). Ainda assim a aliança de príncipes evangélicos foi derrotada, anos mais tarde, pelo rei da Espanha. Como sinal de seu triunfo, ele cavalgou para dentro da igreja de Wittemberg. Seguiu-se um século de conflitos, guerras e perseguições até que, na Paz da Westfália, os evangélicos asseguraram o seu direito de culto no império alemão.
Se a Reforma Luterana fosse obra humana, certamente ela teria sucumbido. Se a palavra de Lutero tivesse sido palavra sua, ela teria caído em esquecimento. Mas este movimento de reforma não foi obra humana. Não resultou dos condicionamentos históricos da época. Foi, isto sim, um despertamento que Deus gerou para reconduzir os seus amados à sua graça inefável. Como interpretação fiel do testemunho das Sagradas Escrituras, o falar do seu servo Lutero continua chegando a nós. Disso o seu cântico vigoroso que ecoa pelas igrejas evangélicas de todo o mundo dá testemunho:
Deus é castelo forte e bom, defesa e armamento;
Assiste-nos com sua mão, na dor e no tormento.
O rei infernal das trevas, do mal, com todo o poder
e astúcia quer vencer: igual não há na terra.
A minha força nada faz, sozinho estou perdido.
Um homem a vitória traz, por Deus foi escolhido.
Quem trouxe esta luz? Foi Cristo Jesus, o eterno Senhor,
outro não tem vigor; triunfará na luta.
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