por Percival Puggina
Remexendo nos guardados do porão da casa da família, o velhote encontrou diversas garrafas de vinho avinagrado e, debaixo delas, uma outra, com rótulo ilegível, grafado em cirílico, onde só dava para entender a palavra vodka. “Esta não estraga”, pensou feliz, enquanto com rápidos movimentos da mão retirava a espessa camada de poeira que se acumulara. Como o leitor sabe, esfregar com a mão garrafas velhas encontradas por acaso é coisa que não se faz desde que inventaram as anedotas com gênios brincalhões. Nunca dá certo.
Mas já estava feito. A tampa saltou e o jato de fumaça saído do interior imediatamente transformou-se num gênio, vestido a rigor, com turbante, túnica e cirwal. Enquanto contemplava a aparição, o velhote percebeu que seu gênio tinha uma fisionomia conhecida, marcada por barba crespa, longa e espessa. “Karl Marx!” gritou emocionado pelo encontro mágico com seu guia, em cujas idéias depositara, sem qualquer retorno válido, todas as certezas e esperanças de sua juventude.
“Veja o que fizeram comigo”, explicou-se Karl. “Quando me apresentei perante São Pedro ele me acusou de ter inventado o comunismo e eu me defendi dizendo o que todo mundo sabe, que eu sou um gênio em economia. Aí , ele saltou dizendo: ‘Gênio, é?’ – e me enfiou dentro desta maldita garrafa. Agora estou sentenciado a atender um desejo seu. Diga lá”. O velhote poderia ter pedido juventude, dinheiro, beleza ou poder, mas, entusiasmado pela presença do seu guru, exigiu uma crise que fizesse desabar raios e trovões sobre o capitalismo.
O episódio acima é recentíssimo e o resto da história vocês já conhecem. O que talvez não tenham percebido é a rapidez com que surgiram outros gênios tentando buscar reconhecimento para idéias que eles mesmos haviam arremessado ao fundo da gaveta das coisas inservíveis. O que dizem? Afirmam que o capitalismo afundou, que o socialismo venceu e que os empresários viraram socialistas a clamar pela proteção do Estado. Gênios de garrafa de vodca! As crises são decorrências naturais das funções e ações humanas. Há crises na democracia, na política, na fé, nas famílias, nos amores, nas empresas, na economia e por aí vai. Existem crises passageiras e crises definitivas, como a que acometeu o socialismo “científico” do velho Karl. Quanto a esse, sabe-se bem: deu tudo errado, acabou, não tem mais em qualquer país sério.
Os estados nacionais, ao intervirem no mercado, não retiraram a poeira de cima da garrafa do velho Karl, mas fizeram aquilo que lhes corresponde nos regimes democráticos, quando necessário, em favor do bem comum. Aliás, não há antagonismo entre Mercado e Estado e labora em equívoco quem se supõe obrigado a adotar um ou outro como fetiche. Ambos são relevantes e têm funções distintas: nem o mercado governa os povos, nem o Estado se encarrega dos negócios. Aquele é importante para prover bens e serviços, emprego e renda, investimentos e tributos. Este é importante, por exemplo, para: a) atender demandas que o mercado não supre; b) estabelecer por via legítima, que respeite a dignidade da pessoa humana, o governo das nações; e c) evitar as distorções que a liberdade, sem quaisquer restrições, faz ocorrer na Economia. Essas distorções, em essência, nada diferem das que se verificam no âmbito da liberdade individual na ausência de qualquer autoridade e norma – passa-se a fazer muito mais do que se deseja e muito menos do que se deve. Foi o que ocorreu na gastança norte-americana e na farra dos derivativos.
É claro que o mercado teria dado um jeito nisso. Era deixar quebrar, era deixar que os depositantes dos bancos perdessem seu dinheiro, era deixar que os fundos de pensão ficassem sem fundos e as pensões acabassem, era deixar o desemprego se expandir a níveis imprevisíveis, porque com o tempo, claro, tudo se ajeitaria. Mas o juízo político de inúmeros governos democráticos evidenciou, em consenso, que a intervenção do Estado iria abrandar os prejuízos e encurtar a duração da crise.
Contudo, chamar de socialismo a essa intervenção (tardia e produto de anterior falta de controles adequados) é redondo absurdo, assim como é absurdo redondo imaginar que o Estado só exista para limitar sua atuação.
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