domingo, 9 de novembro de 2008

Uma Dicotomia Enganadora...

Por Dr. Jónatas E. M. Machado, Universidade de Coimbra, Portugal*

Onde estavas tu quando eu criei a Terra? Diz-me, se tens entendimento! Jó, 38:4

Os céus e a Terra passarão, mas as minhas palavras não hão de passar. Marcos 13: 31

O pensamento moderno sublinha a dicotomia epistemológica entre a Bíblia - do domínio da subjetividade, da fé e da moralidade - e a ciência - com autoridade no plano da realidade objetiva. Para este entendimento, a ciência preocupa-se, acima de tudo, com os fatos, ao passo que a fé releva no domínio simbólico da interpretação subjetiva desses fatos. Em outras palavras, a ciência seria o domínio por excelência das afirmações de fato, ao passo que a fé seria um campo reservado à interpretação e à formulação de juízos de valor. Repare-se que esta divisão de tarefas é manifestamente assimétrica, na medida em que remete para a ciência a definição do que seja o conhecimento daquilo que objetivamente existe, deixando para a religião uma função meramente especulativa e interpretativa, subjetiva, em torno do significado das coisas.

A ciência tem assim uma preponderância natural sobre a religião. Aquela é objetiva e sólida, ao passo que esta é subjetiva e precária. A primeira preocupa-se com a realidade e a segunda com sentimentos e crenças. No mundo real elas nunca se encontram, porque estão em esferas diferentes. De acordo com este entendimento, todos teriam racionalmente que aceitar os dados objetivos da ciência, ficando a religião reservada às mentes mais débeis e carentes ou mais dadas a emoções subjectivas1. Assim, todos teriam que acreditar na evolução (facto científico objetivo obrigatório), mas os crentes sempre poderiam dizer, à margem de qualquer evidência empírica, que Deus conduziu o processo de evolução, ou até que Deus é a evolução (crença religiosa subjetiva facultativa).

O Criacionismo Bíblico rejeita liminarmente esta divisão epistêmica de tarefas entre a ciência e a fé por ser manifestamente improcedente e falaciosa, particularmente no que diz respeito à questão das origens2. Ela dá como demonstrado o que ainda é preciso demonstrar. Com efeito, longe de se esgotar na produção de afirmações de fato, a ciência assenta largamente na interpretação e na especulação (v.g. tudo começou com um Big Bang; a vida surgiu por acaso de uma sopa pré-biótica; as aves evoluíram de dinossauros ou de pequenos répteis). Por sua vez, a religião também pretende fazer afirmações de fato (v.g. Deus é o autor da vida; Deus criou plantas, animais e o ser humano, praticamente ao mesmo tempo e segundo a sua espécie; o dilúvio do Génesis foi real e global) 3. Vejamos mais de perto esta questão, pensando especificamente no cristianismo e no darwinismo.

Quanto ao primeiro, a Bíblia, desde o Gênesis ao Apocalipse, afirma que é a Palavra de Deus verbalmente inspirada, tendo sido sempre considerada como tal pelos judeus (quanto ao Velho Testamento) e pelos cristãos 4. Jesus afirmou que as suas palavras são mais sólidas e duradouras do que os próprios céus e a Terra. A palavra do Criador é digna de toda a confiança. Porque assim é, a Bíblia nunca se coloca no domínio da pura interpretação subjetiva de fatos5. Bem pelo contrário, a validade das mais importantes doutrinas bíblicas apoia-se em fatos objetivos (criação; queda; dilúvio global; dispersão; aliança; êxodo; nascimento, morte e ressurreição de Jesus) cuja explicação só pode ser encontrada, não na regularidade das leis naturais, mas na ação extraordinária de Deus, o qual também criou essas leis. Na Bíblia os fatos são importantes porque mostram a ação providencial de Deus na história humana e as doutrinas são dignas de crédito precisamente porque se apoiam em fatos objectivos e não em mitos ou “fábulas engenhosas”.6

Na Bíblia é claro que os milagres de Jesus são autênticos e testemunham da Sua qualidade de Criador. A ressurreição física de Cristo é igualmente um fato histórico con creto, sem o qual a fé não tem sentido. Tentar desmitificar ou encontrar explicações científicas para estes e outros milagres que a Bíblia relata é passar totalmente ao lado da verdade fundamental que a Bíblia visa transmitir: o Universo foi criado por um Deus pessoal que intervém ativamente na história do Homem - criado à Sua imagem e semelhança - que, por causa do pecado da humanidade, encarnou na pessoa de Jesus Cristo para redimir o mundo através da Sua morte e ressurreição!7 Se os fatos mencionados pelo relato bíblico não são verdadeiros, a história da salvação deixa de ter sentido. Isto mesmo sustentou o Apóstolo Paulo: “se Cristo não ressuscitou, logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé”.8

Por sua vez, o darwinismo, longe de se apoiar numa análise neutra e objectiva dos fatos, é fundamentalmente interpretação.9 Os registos históricos mais antigos que se conhecem têm cerca de quatro mil e quinhentos anos. São dessa era as civilizações mais antigas. Para além desse limite, a reconstituição historiográfica dos acontecimentos é feita com base em extrapolações, alicerçadas em pressupostos e modelos teóricos pré-concebidos, hoje predominantemente de matriz evolucionista. Sucede que nunca ninguém viu a sopa prébiótica, nem tão pouco um dinossauro a transformar-se em ave há cerca de 100 milhões de anos atrás. Do mesmo modo, nem os fósseis nem as rochas sedimentares trazem inscrita a sua idade, sendo datados com base nas premissas (evolucionistas) adotadas desde o início. Ora, não existe uma máquina que nos permita viajar no tempo e assim confirmar de forma absolutamente correcta as conclusões que aqui e agora tiramos acerca do passado distante. Mesmo as tentativas de observar o passado a partir das investigações astronômicas supõem a aceitação de premissas sobre a velocidade da luz.10

Do mesmo modo, as “provas” da evolução deduzidas pela Teoria da Evolução da homologia genética ou estrutural e funcional que se observa entre as diferentes espécies de animais, não passam de uma interpretação, sendo certo que o Criacionismo Bíblico utiliza os mesmos fatos para corroborar a sua crença num Criador comum. Aliás, o próprio Ernst Mayr reconheceu expressamente, na entrevista acima mencionada**, o amplo lastro interpretativo e especulativo que permeia todo o seu trabalho. Muitos dos “fatos” a que a darwinismo faz referência não passam de construções intelectuais feitas a partir de modelos, ou resultantes da assunção de premissas, pré-concebidos. Uma coisa é certa: os fatos com que os evolucionistas e os criacionistas se defrontam são exactamente os mesmos. A interpretação desses fatos é que difere, em função das premissas e dos modelos explicativos e preditivos de que ambos partem.

Assim, a ideia de que a religião e a ciência constituem dois “magistérios não sobreponíveis” (Stephen Jay Gold)11, na sua aparente plausibilidade, peca, numa avaliação condescendente, por ser demasiado ingênua e simplista. Em rigor, como veremos adiante, a mesma está longe de ser inocente. Acresce que a referida dicotomia epistêmica, além de ser má para a religião, tem também efeitos nefastos para a própria ciência. Com efeito, ao remeter para a religião o exclusivo da reflexão em torno da origem sobrenatural do Universo, aquela delimitação de tarefas vincula a ciência, de forma inexorável, a premissas teóricas e metodológicas de base estritamente naturalista e materialista, as quais se têm vindo a revelar insuficientes para explicar o mundo tal como existe. Se o Universo tiver sido o resultado de um design inteligente, hipótese que a ciência não pode descartar a priori, então uma metodologia estritamente naturalista, no pior sentido da palavra, estará impedida de explicar todas as suas características.

A ciência das origens não pretende responder apenas à questão de saber “como é que o Universo surgiu por acaso?”, mas sim “como é que o Universo surgiu?”. Diante desta questão o acaso é apenas uma das respostas teorética e cientificamente possíveis. A necessidade e o design inteligente são outras. Não há qualquer razão para excluir a priori qualquer destas respostas. Se isso acontecer, a evolução aleatória será estabelecida como verdade estipulativa, por definição, tornando-se imune a qualquer crítica. A Teoria da Evolução e o Criacionismo Bíblico pretendem responder à mesma questão a partir da análise dos mesmos fatos, mas com base em postulados diferentes. O que está em causa, em última análise, não é um conflito entre ciência e fé, mas sim entre duas religiões ou visões do mundo substancialmente diferentes: a visão naturalista e a visão bíblica.12 Esta última fornece um quadro explicativo e preditivo muito mais consistente com os dados empíricos observáveis.

Referências

1. Philip Johnson, Objections Sustained, Subversive Essays on Evolution, Law and Culture, Interevarsity Press, 1998, 67ss.

2. Jonathan Sarfati, Refuting Evolution, 15ª Reimp. Master Books, 2003, 15ss.

3. Henry Morris, The Genesis Record, Baker Book House, Grand Rapids, Michigan, 1976, 22ss.

4. Charles C. Ryrie, A Survey of Bible Doctrine, Chicago, Moody, 1972, 38; Henry Morris, Biblical Creationism, What Each Book of the Bible Teaches About Creation and the Flood, Master Books, 2000, 3ss.

5. Jonathan Sarfati, Refuting Compromise, Masterbooks, 2004, 35ss.

6. II Pedro 1:16.

7. João 3:16.

8. I Coríntios 15:14.

9. Duane T. Gish, Evolution: The Fossils Still Say No!, ICR, 1995, 1ss.

10. Sarfati, Refuting Compromise..., cit., 65 ss.

11. Stephen Jay Gould, Rocks of Ages: Science and Religion in the Fullness of Life, Ballantine, 1999, 49ss.

12. Isto mesmo é reconhecido pelo filósofo evolucionista Michael Ruse, The Evolution- Creation Struggle, Cambridge, Harvard University Press, 2005, 287, afirmando: “My area of expertise is the clash between evolutionists and creationists, and my analysis is that we have no simple clash between science and religion but rather between two religions.”

* Este artigo é parte de um estudo completo do Dr. Jónatas E. M. Machado, publicado na Revista do Centro Acadêmico de Democracia Cristã “ESTUDOS”, Nova Série N° 2, Coimbra, Portugal, Junho 2004:107-166.

** “Ernst Mayr é particularmente claro quanto a este ponto. Para ele, a ciência fornece um quadro objectivo muito diferente do relato do Génesis. Em seu entender1 , podemos conservar e apreciar estas histórias da criação como parte da nossa herança cultural, mas voltamo-nos para a ciência quando queremos aprender a verdade real sobre a história do mundo.” Ernst Mayr, What Evolution Is, Basic Books, New York, 2001, 5.

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