por Olavo de Carvalho
O traço mais saliente e característico da classe intelectual no Brasil de hoje (quero dizer, dos últimos trinta anos) é o seu espírito de solidariedade grupal mafiosa, muito mais coeso, ciumento e impenetrável que o das corporações similares em outros países.
Vários fatores produzem esse fenômeno.
Um deles é a fusão indissolúvel do ofício intelectual com a militância partidária (esquerdista, é claro). Algo disso existe um pouco por toda parte, mas não em dosagem brasileira. Neste país a ascensão de um professor na escala acadêmica depende em quase nada das suas realizações intelectuais – em geral nulas ou desprezíveis – e em quase tudo da posição que ocupe na hierarquia partidária ou pelo menos nas afeições da liderança esquerdista. Carreiras como as dos srs. Emir Sader, Quartim de Moraes, Fernando Haddad, Luis Felipe de Alencastro e tantos outros seriam inexplicáveis sem isso. O dever de fidelidade partidária transmite-se, pela convivência estreita, à comunidade acadêmica, infundindo-lhe aquele sentimento de unanimismo e de autoproteção corporativa, que ao chamado da liderança mobiliza num instante um por todos, todos por um, com homogeneidade quase militar.
Uma segunda causa é a intimidade promíscua – também muito maior do que em outros países – de mídia e universidade, esta ditando as normas do aceitável e do inaceitável, aquela seguindo-as fielmente e, em troca, influindo na ascensão e queda das estrelas acadêmicas, produzindo do nada prestígios intelectuais tão formidáveis quanto incompreensíveis e condenando ao ostracismo quem caia no desagrado do mandarinato provinciano.
Mas, sem dúvida, o fator mais decisivo que aproxima e gruda esses sujeitos uns nos outros como uma colônia de ostras é a secreta consciência de sua própria inépcia, que rói cada um por dentro e o impele a buscar na aprovação do grupo um talismã contra os riscos da aventura intelectual solitária. Sim, o que o típico intelectual brasileiro de hoje mais teme, o que ele evita como à peste, é embrenhar-se sozinho na busca da verdade, desbravando territórios desconhecidos, sem que a bênção maternal da comunidade o venha tranqüilizar assegurando-lhe que não está louco nem raiando perigosamente alguma heresia.
Curiosamente, esse apego uterino, esse gregarismo pastoso de mentes atrofiadas é vendido ao público – e aos próprios membros do grupo – como se fosse a mesma coisa que a colaboração acadêmica, sem que aparentemente ninguém perceba a distância imensa que separa essas duas coisas, tão distintas entre si quanto um rosto humano e uma caricatura infernal.
É verdade nenhum progresso do conhecimento se alcança sem o diálogo, sem que as intuições pessoais, mesmo fundadas em investigações profundas, se exponham ao exame da comunidade erudita, conhecedora do status quaestionis. Mas não pode haver esse tipo de diálogo senão entre inteligências personalizadas, cada qual possuidora de um universo mental próprio, conquistado na audácia da busca solitária, sem o suporte consolador das crenças coletivas.
Isso simplesmente não existe – ou não existe mais – no meio intelectual brasileiro. Mentalidades reduzidas à impotência pelo vício do gregarismo não precisam nem podem entrar em diálogo, porque nada têm a trocar senão o igual pelo idêntico, o usual pelo costumeiro e o banal pelo ordinário. O que fazem não é diálogo, é monólogo coletivo. Tão plana, vulgar e torpe é a uniformidade das suas idéias, que às vezes têm de se apegar a miúdas diferenças de estilo ou de vocabulário – senão a alguma ciumeira pessoal, que nunca falta – para dar um arremedo de colorido ao cinzento ritual diuturno da confirmação recíproca. Chamar esse ambiente de medíocre seria louvá-lo imerecidamente. Mediocridade é apenas um padrão estatístico, distribuído anonimamente na multidão. Quando os medíocres se agregam e se condensam numa corporação organizada, o peso comum se adensa e o conjunto acaba descendo muito abaixo da média. O brasileiro comum é muito, muito mais inteligente do que os sessenta conselheiros acadêmicos do sr. presidente da República, autodenominados coletivamente “os intelectuais” para dar a entender que são os únicos que existem. O homem comum sabe que o problema mais grave do Brasil é a criminalidade. “Os intelectuais” não sabem. O primeiro aproveita para falar do assunto cada oportunidade que as pesquisas lhe dão. Os segundos reúnem-se com o sr. presidente para passar metodicamente em revista os males nacionais, e nem um único dentre eles se lembra de mencionar, mesmo por alto, que cinqüenta mil brasileiros morrem assassinados por ano (parece que, como meio de glorificação do governo pelos intelectuais da côrte, o crime não compensa).
Um lado especialmente deplorável do fenômeno é que, como a busca da segurança psíquica é às vezes mais forte do que os dois motivos políticos acima citados, o esprit de corps da submediocridade acadêmica se estende, por automatismo, até aos membros não esquerdistas (ou não muito esquerdistas) da comunidade. Não podendo aderir ativamente à política dominante, eles partem para a adesão passiva, refreando toda conduta verbal que dê sinal de direitismo, omitindo qualquer citação a autores tidos por inconvenientes ou, nos momentos extremos, assinando um ou outro manifesto de esquerda, naturalmente pelos motivos mais apolíticos que lhes ocorram no momento.
O mais irônico de tudo é que a própria miséria mental do grupo lhe dá uma certa autoconfiança ad hoc, na medida em que, eliminada toda investigação pessoal da verdade, o que resta no ar é um feixe de certezas coletivas reconfortantemente indiscutíveis. Com base nessa confiança, cada um dos integrantes do grupo está apto a posar de autoridade cientifica perante seus alunos, aos quais impõe opiniões com tanto mais facilidade quanto mais convencido esteja de personificar, como membro da comunidade iluminada, a verdade, o bem, o justo e o belo, isto é, precisamente aquelas coisas que, segundo as crenças marxistas e desconstrucionistas ali vigentes, não existem de maneira alguma e foram apenas inventadas pela burguesia para ludibriar os pobres.
O que não é de estranhar é que, sendo toda a sua segurança psicológica baseada num amálgama das mentiras existenciais de seus membros, uma comunidade tão coesa, tão ciosa da sua própria importância imaginária, viva assombrada pelo temor da decomposição e se torne tanto mais medrosa quanto mais escorada num sistema rígido de autodefesas neuróticas, acreditando enxergar perigos apocalípticos ao menor sinal de que alguém lhe fez alguma censura fora dos padrões admissíveis da autocrítica controlada, corporativa e comunista.
Por várias vezes tive a oportunidade de ser pessoalmente o fator aterrorizante que sacudiu até aos alicerces a autoconfiança da troupe, ocasiões nas quais tive o desgosto de ver centenas ou milhares de veneráveis anciãos e graves senhores de meia-idade correndo, como crianças assustadas, para defender a comunidade ameaçada pelo total de um (hum) atacante.
Houve época em que eu ria desse espetáculo. Hoje sei que não é coisa para rir. A farsa acadêmica brasileira não expressa só a pobreza intelectual assustadora da elite ensinante, que, por si, basta para explicar o desastre da educação nacional. Ela põe à mostra também uma miséria humana sem fim, já que ninguém opta pelo fingimento pomposo senão para esconder o desprezo que, no fundo, sente por si mesmo – e no Brasil acadêmico essa opção é o único tipo de vida intelectual que resta.
O traço mais saliente e característico da classe intelectual no Brasil de hoje (quero dizer, dos últimos trinta anos) é o seu espírito de solidariedade grupal mafiosa, muito mais coeso, ciumento e impenetrável que o das corporações similares em outros países.
Vários fatores produzem esse fenômeno.
Um deles é a fusão indissolúvel do ofício intelectual com a militância partidária (esquerdista, é claro). Algo disso existe um pouco por toda parte, mas não em dosagem brasileira. Neste país a ascensão de um professor na escala acadêmica depende em quase nada das suas realizações intelectuais – em geral nulas ou desprezíveis – e em quase tudo da posição que ocupe na hierarquia partidária ou pelo menos nas afeições da liderança esquerdista. Carreiras como as dos srs. Emir Sader, Quartim de Moraes, Fernando Haddad, Luis Felipe de Alencastro e tantos outros seriam inexplicáveis sem isso. O dever de fidelidade partidária transmite-se, pela convivência estreita, à comunidade acadêmica, infundindo-lhe aquele sentimento de unanimismo e de autoproteção corporativa, que ao chamado da liderança mobiliza num instante um por todos, todos por um, com homogeneidade quase militar.
Uma segunda causa é a intimidade promíscua – também muito maior do que em outros países – de mídia e universidade, esta ditando as normas do aceitável e do inaceitável, aquela seguindo-as fielmente e, em troca, influindo na ascensão e queda das estrelas acadêmicas, produzindo do nada prestígios intelectuais tão formidáveis quanto incompreensíveis e condenando ao ostracismo quem caia no desagrado do mandarinato provinciano.
Mas, sem dúvida, o fator mais decisivo que aproxima e gruda esses sujeitos uns nos outros como uma colônia de ostras é a secreta consciência de sua própria inépcia, que rói cada um por dentro e o impele a buscar na aprovação do grupo um talismã contra os riscos da aventura intelectual solitária. Sim, o que o típico intelectual brasileiro de hoje mais teme, o que ele evita como à peste, é embrenhar-se sozinho na busca da verdade, desbravando territórios desconhecidos, sem que a bênção maternal da comunidade o venha tranqüilizar assegurando-lhe que não está louco nem raiando perigosamente alguma heresia.
Curiosamente, esse apego uterino, esse gregarismo pastoso de mentes atrofiadas é vendido ao público – e aos próprios membros do grupo – como se fosse a mesma coisa que a colaboração acadêmica, sem que aparentemente ninguém perceba a distância imensa que separa essas duas coisas, tão distintas entre si quanto um rosto humano e uma caricatura infernal.
É verdade nenhum progresso do conhecimento se alcança sem o diálogo, sem que as intuições pessoais, mesmo fundadas em investigações profundas, se exponham ao exame da comunidade erudita, conhecedora do status quaestionis. Mas não pode haver esse tipo de diálogo senão entre inteligências personalizadas, cada qual possuidora de um universo mental próprio, conquistado na audácia da busca solitária, sem o suporte consolador das crenças coletivas.
Isso simplesmente não existe – ou não existe mais – no meio intelectual brasileiro. Mentalidades reduzidas à impotência pelo vício do gregarismo não precisam nem podem entrar em diálogo, porque nada têm a trocar senão o igual pelo idêntico, o usual pelo costumeiro e o banal pelo ordinário. O que fazem não é diálogo, é monólogo coletivo. Tão plana, vulgar e torpe é a uniformidade das suas idéias, que às vezes têm de se apegar a miúdas diferenças de estilo ou de vocabulário – senão a alguma ciumeira pessoal, que nunca falta – para dar um arremedo de colorido ao cinzento ritual diuturno da confirmação recíproca. Chamar esse ambiente de medíocre seria louvá-lo imerecidamente. Mediocridade é apenas um padrão estatístico, distribuído anonimamente na multidão. Quando os medíocres se agregam e se condensam numa corporação organizada, o peso comum se adensa e o conjunto acaba descendo muito abaixo da média. O brasileiro comum é muito, muito mais inteligente do que os sessenta conselheiros acadêmicos do sr. presidente da República, autodenominados coletivamente “os intelectuais” para dar a entender que são os únicos que existem. O homem comum sabe que o problema mais grave do Brasil é a criminalidade. “Os intelectuais” não sabem. O primeiro aproveita para falar do assunto cada oportunidade que as pesquisas lhe dão. Os segundos reúnem-se com o sr. presidente para passar metodicamente em revista os males nacionais, e nem um único dentre eles se lembra de mencionar, mesmo por alto, que cinqüenta mil brasileiros morrem assassinados por ano (parece que, como meio de glorificação do governo pelos intelectuais da côrte, o crime não compensa).
Um lado especialmente deplorável do fenômeno é que, como a busca da segurança psíquica é às vezes mais forte do que os dois motivos políticos acima citados, o esprit de corps da submediocridade acadêmica se estende, por automatismo, até aos membros não esquerdistas (ou não muito esquerdistas) da comunidade. Não podendo aderir ativamente à política dominante, eles partem para a adesão passiva, refreando toda conduta verbal que dê sinal de direitismo, omitindo qualquer citação a autores tidos por inconvenientes ou, nos momentos extremos, assinando um ou outro manifesto de esquerda, naturalmente pelos motivos mais apolíticos que lhes ocorram no momento.
O mais irônico de tudo é que a própria miséria mental do grupo lhe dá uma certa autoconfiança ad hoc, na medida em que, eliminada toda investigação pessoal da verdade, o que resta no ar é um feixe de certezas coletivas reconfortantemente indiscutíveis. Com base nessa confiança, cada um dos integrantes do grupo está apto a posar de autoridade cientifica perante seus alunos, aos quais impõe opiniões com tanto mais facilidade quanto mais convencido esteja de personificar, como membro da comunidade iluminada, a verdade, o bem, o justo e o belo, isto é, precisamente aquelas coisas que, segundo as crenças marxistas e desconstrucionistas ali vigentes, não existem de maneira alguma e foram apenas inventadas pela burguesia para ludibriar os pobres.
O que não é de estranhar é que, sendo toda a sua segurança psicológica baseada num amálgama das mentiras existenciais de seus membros, uma comunidade tão coesa, tão ciosa da sua própria importância imaginária, viva assombrada pelo temor da decomposição e se torne tanto mais medrosa quanto mais escorada num sistema rígido de autodefesas neuróticas, acreditando enxergar perigos apocalípticos ao menor sinal de que alguém lhe fez alguma censura fora dos padrões admissíveis da autocrítica controlada, corporativa e comunista.
Por várias vezes tive a oportunidade de ser pessoalmente o fator aterrorizante que sacudiu até aos alicerces a autoconfiança da troupe, ocasiões nas quais tive o desgosto de ver centenas ou milhares de veneráveis anciãos e graves senhores de meia-idade correndo, como crianças assustadas, para defender a comunidade ameaçada pelo total de um (hum) atacante.
Houve época em que eu ria desse espetáculo. Hoje sei que não é coisa para rir. A farsa acadêmica brasileira não expressa só a pobreza intelectual assustadora da elite ensinante, que, por si, basta para explicar o desastre da educação nacional. Ela põe à mostra também uma miséria humana sem fim, já que ninguém opta pelo fingimento pomposo senão para esconder o desprezo que, no fundo, sente por si mesmo – e no Brasil acadêmico essa opção é o único tipo de vida intelectual que resta.
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